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O valor da normalidade
Normalidade inicialmente deveria ser apenas um conceito. Mas, o conceito transformou-se em um valor. Um instrumento de poder e status. Se considerarmos apenas os textos médicos e científicos que tratam do assunto, certamente parecerá absurdo pensar na normalidade como um instrumento de poder e status. Aqui fora, no cotidiano, as pessoas são avaliadas e julgadas de acordo com o “bom” ou “mal” funcionamento do corpo. Não há, portanto, espaço para a diversidade, para o funcionamento diferente. Somos, em regra, medidos pelo padrão de normalidade.
Quando perguntam se há tratamento ou cura para a nossa diferença funcional, de fato estão dizendo que há uma condição mais desejável (melhor) que a nossa. E como a diferença incomoda! Incomoda tanto, que estranhos chegam e falam conosco sobre o assunto, usando como mote a matéria que viram na televisão sobre um tratamento... não sabem explicar direito, mas chegam e dizem que a cura está a caminho.
Hoje em dia, com ampla divulgação (algumas vezes, divulgação sensacionalista) de promissoras pesquisas, as pessoas estão alvoroçadas. Há vinte anos, quando minha diferença funcional era recente, não havia alvoroço. Havia um olhar desolado diante de uma condição indesejável, irreversível e inaceitável: “Coitado. Vai ficar preso a está cadeira de rodas prá sempre”.
O forte apelo pela eliminação da diferença não surgiu com o avanço da ciência. Aliás, tanto o apelo como a prática remontam à Antiguidade. As práticas mais grotescas implicavam a eliminação sumária das pessoas diferentes. Eram práticas adotadas sem qualquer objeção familiar, social, religiosa, jurídica. Pasmem, mas todas estas instâncias participavam do processo. Sim. Participavam. Inclusive a família e a Igreja. Eliminava-se a pessoa com sua diferença a um só golpe. Nota-se, assim, que o costume de ver a “deficiência” no lugar da pessoa é algo bem antigo.
Felizmente as coisas mudaram. Mudaram um pouco. Com o avanço da ciência, a medicina desenvolveu formas menos truculentas de eliminar a diferença. O padrão de normalidade serviu para isto: “Não há um espírito mau, ou um pecado na vida/no corpo dessa pessoa. Ela é apenas anormal, ineficiente, incapaz. Mas nós podemos consertá-la. Podemos normalizar os que não se encaixam no nosso padrão de normalidade”.
A medicina tem a chancela da ciência. Este carimbo de qualidade é valiosíssimo. Tão valioso que diariamente vemos na televisão propagandas de produtos “testados cientificamente”. Se é testado, e se e aprovado pela ciência, é bom! Não há o que questionar! É assim que nos comportamos!
Com o padrão legitimado e aceito, a normalidade passou a ser exigida e desejada. Exigida por aqueles que se sentem incomodados com a diferença do outro. Desejada por aqueles que não aceitam a própria diferença. A priori, o desejo de “ser normal” não é um desejo pessoal. Ao contrário, é um desejo social. O desejo de “ser normal” só será pessoal depois de ter passado pelo senso crítico de cada indivíduo. Aí então saberemos responder se aquilo que desejamos é realmente bom, necessário, ou importante para nós...
A ciência é imprescindível para a humanidade. Eu diria até que a ciência é maravilhosa! Mas, a confiança cega na ciência me preocupa. Me preocupa pensar que haverá um forte apelo – senão uma coerção! – social, familiar, midiático em torno das novas possibilidades que a ciência trará para a diversidade funcional.
Hoje temos liberdade para pesquisar. E o cenário é muito promissor para a ciência. Creio que as formas de diferença funcional que conhecemos hoje, desaparecerão no futuro. Em breve, nossas diferenças funcionais serão facilmente compensadas e até eliminadas com artefatos que a ciência nos dará. Tomara que o nosso senso crítico avance com a tecnologia, e não a reboque dela.
As diferenças funcionais poderão ser eliminadas. Mas, ainda assim, seremos diferentes.
Podemos ser “normalizados” e fazer tudo como a maioria faz Mas, ainda assim, seremos diferentes.
A tecnologia fará de nós pessoas mais funcionais. Mas, ainda assim, seremos diferentes.
Ser diferente incomoda. O incômodo causado pela diferença produz preconceito, discriminação, rejeição... Rejeita-se a diferença do outro. Rejeita-se inclusive a própria diferença.
Se a diferença permanecerá, haverá fim para o preconceito?
* * *
Quando perguntam se há tratamento ou cura para a nossa diferença funcional, de fato estão dizendo que há uma condição mais desejável (melhor) que a nossa. E como a diferença incomoda! Incomoda tanto, que estranhos chegam e falam conosco sobre o assunto, usando como mote a matéria que viram na televisão sobre um tratamento... não sabem explicar direito, mas chegam e dizem que a cura está a caminho.
Hoje em dia, com ampla divulgação (algumas vezes, divulgação sensacionalista) de promissoras pesquisas, as pessoas estão alvoroçadas. Há vinte anos, quando minha diferença funcional era recente, não havia alvoroço. Havia um olhar desolado diante de uma condição indesejável, irreversível e inaceitável: “Coitado. Vai ficar preso a está cadeira de rodas prá sempre”.
O forte apelo pela eliminação da diferença não surgiu com o avanço da ciência. Aliás, tanto o apelo como a prática remontam à Antiguidade. As práticas mais grotescas implicavam a eliminação sumária das pessoas diferentes. Eram práticas adotadas sem qualquer objeção familiar, social, religiosa, jurídica. Pasmem, mas todas estas instâncias participavam do processo. Sim. Participavam. Inclusive a família e a Igreja. Eliminava-se a pessoa com sua diferença a um só golpe. Nota-se, assim, que o costume de ver a “deficiência” no lugar da pessoa é algo bem antigo.
Felizmente as coisas mudaram. Mudaram um pouco. Com o avanço da ciência, a medicina desenvolveu formas menos truculentas de eliminar a diferença. O padrão de normalidade serviu para isto: “Não há um espírito mau, ou um pecado na vida/no corpo dessa pessoa. Ela é apenas anormal, ineficiente, incapaz. Mas nós podemos consertá-la. Podemos normalizar os que não se encaixam no nosso padrão de normalidade”.
A medicina tem a chancela da ciência. Este carimbo de qualidade é valiosíssimo. Tão valioso que diariamente vemos na televisão propagandas de produtos “testados cientificamente”. Se é testado, e se e aprovado pela ciência, é bom! Não há o que questionar! É assim que nos comportamos!
Com o padrão legitimado e aceito, a normalidade passou a ser exigida e desejada. Exigida por aqueles que se sentem incomodados com a diferença do outro. Desejada por aqueles que não aceitam a própria diferença. A priori, o desejo de “ser normal” não é um desejo pessoal. Ao contrário, é um desejo social. O desejo de “ser normal” só será pessoal depois de ter passado pelo senso crítico de cada indivíduo. Aí então saberemos responder se aquilo que desejamos é realmente bom, necessário, ou importante para nós...
A ciência é imprescindível para a humanidade. Eu diria até que a ciência é maravilhosa! Mas, a confiança cega na ciência me preocupa. Me preocupa pensar que haverá um forte apelo – senão uma coerção! – social, familiar, midiático em torno das novas possibilidades que a ciência trará para a diversidade funcional.
Hoje temos liberdade para pesquisar. E o cenário é muito promissor para a ciência. Creio que as formas de diferença funcional que conhecemos hoje, desaparecerão no futuro. Em breve, nossas diferenças funcionais serão facilmente compensadas e até eliminadas com artefatos que a ciência nos dará. Tomara que o nosso senso crítico avance com a tecnologia, e não a reboque dela.
As diferenças funcionais poderão ser eliminadas. Mas, ainda assim, seremos diferentes.
Podemos ser “normalizados” e fazer tudo como a maioria faz Mas, ainda assim, seremos diferentes.
A tecnologia fará de nós pessoas mais funcionais. Mas, ainda assim, seremos diferentes.
Ser diferente incomoda. O incômodo causado pela diferença produz preconceito, discriminação, rejeição... Rejeita-se a diferença do outro. Rejeita-se inclusive a própria diferença.
Se a diferença permanecerá, haverá fim para o preconceito?
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Palavras-chave: tecnologia e deficiência; padrão de normalidade; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.
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