domingo, 21 de setembro de 2008

Vamos jogar "deficientes" no lixo!

Talvez você não saiba, mas pode, sim combater o preconceito. Há várias formas de preconceito e certamente eu e você sozinhos não podemos eliminar esta praga. Mas, há muita coisa que eu posso fazer e que você pode fazer. As pessoas com diferença funcional (aquelas que fora desse blog e em praticamente todo o mundo são chamadas de “deficientes”, “pessoas com deficiência”, “portadores de deficiência”...) enfrentam diariamente várias formas de preconceito implantadas e aceitas em todos os segmentos sociais: o preconceito muitas vezes começa em casa, se estende pela vizinhança, e alcança, com requinte de desatenção e desrespeito, os campos da educação, trabalho, lazer, sem deixar de fora os serviços e equipamentos públicos e urbanos.

Eu poderia discorrer sobre cada um dos campos citados, apontando o problema e propondo soluções, com conhecimento de causa e com a legitimidade que a cadeira de rodas e a longa experiência vivencial me conferem. Mas, o assunto de hoje são os termos utilizados para ser referir à diversidade funcional.

Você já parou para pensar no significado de termos como “deficiência”, “pessoa deficiente”, e o adjetivo “coitado”, corriqueiramente usado contra as pessoas com diversidade funcional? Mesmo nos dicionários mais resumidos, o significado é absurdamente incoerente e incompatível com a vida, o corpo, o desempenho e a dignidade de qualquer pessoa.

Vejamos, então, o significado desses termos, segundo o Aurélio, o mais tradicional dicionário da língua portuguesa

Deficiência: 1. Falta, falha, carência. 2. Imperfeição, defeito. 3. Insuficiência

Deficiente: 1.Em que há deficiência; falho, imperfeito. 2. Pessoa que apresenta deficiência física ou psíquica

A Organização Mundial da Saúde – OMS, que não é um dicionário, mas se assemelha ao Aurélio, também propõe uma definição (aliás, muito parecida com o significado apresentado pelo Aurélio):

Deficiência, para a OMS, é a perda ou anormalidade, temporária ou permanente, de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica.

Parece que os burocratas da saúde olharam apenas para os dicionários quando tentaram definir “deficiência”. Parece que ninguém olhou para o cotidiano das pessoas com diferença funcional. Se tivessem olhado, ou se tivessem, para efeitos de laboratório, colocado o trazeiro numa cadeira de rodas e saído para um curto passeio pelas ruas, praças e locais públicos, facilmente poderiam constatar que a tal “deficiência” não é uma condição restrita ao organismo, ou ao corpo da pessoa em questão. O ambiente participa ativa, senão exclusivamente, produzindo limitações, restrições, obstáculos, e por aí afora...

Ainda não se inclui ativamente o ambiente e a sociedade nas discussões sobre a diversidade funcional. Em termos práticos, exige-se de pessoas como eu, o Geraldo, a Beth, o Fabinho, a Camila, a Lília, o Carlos e o Carlinhos, a Ethel e milhares de outros (minha lista é grande, capaz de ilustrar milhões de posts...) nos adaptemos a um mundo e a uma sociedade criados e estruturados para aqueles que andam, falam, vêem e pensam conforme o formato padrão. Há cerca de dois ou três séculos, o formato padrão foi tomado como “normal” (aqui tem o dedo de algumas instituições poderosas, mas trato disso depois), massacrando qualquer pessoa que fugisse a essa norma.

Se voltarmos agora ao Aurélio e à OMS vamos entender tudinho. A falta, a falha, a imperfeição, a anormalidade etc, só existem porque somos comparados com o padrão que iguala a todos em termos funcionais. Foi adotado como “normal” andar com as pernas e de pé, ouvir e entender com os ouvidos, ver com os olhos. Dessa forma, ver com os olhos do Gem (o querido cão-guia de uma amiga do coração) e ler braile com os dedos, não é normal; como não é normal se comunicar em língua de sinais; como também não é normal usar cadeira de rodas...

E para todos nós, funcionalmente diferentes, quando somos vistos fazendo o que PARA NÓS é normal, somos admirados e elogiados e tratados como heróis (é moleza para um cadeirante ser condecorado como herói, qualquer pulinho que damos sobre um ressalto nos faz heróis!). Curiosamente, somos os únicos heróis cujos elogios recebidos são formulados com um toque sutil de piedade... “Coitados! Como lutam esses deficientes”. Tenho certeza que a Camila e o Carlos nunca ouviram esta frase; eles são surdos e a diferença funcional dos dois é na linguagem (Eles usam LIBRAS), mas, nós outros já ouvidos no mínimo alguma variação dessa frase.

Vamos pensar juntos no sentido de “Coitados!”, palavrinha horrível que a Camila e o Carlos, felizmente surdos, nunca ouviram.

“Coitado” vem de “coitar”, no sentido de afligir, desgraçar (há ainda um sentido sexual em “coitar” que eu não vou discutir aqui). “Coitado” significa também “desgraçado”, “mísero”, “pobre infeliz”...

Um dos sinônimos de “coitado” é “desgraçado”, que significa má sorte; infortúnio; miséria, penúria; infelicidade; privação da graça de alguém; desfavor; pessoa inábil, incapaz, inepta.

Pra encurtar o post, temos razões de sobra para jogar na lixeira termos como “deficiência”, “pessoa com deficiência”, “deficiente”, “coitado” e todos os outros amplamente utilizados para se referir à diversidade funcional.

Minha sugestão é que você ajude a combater o preconceito e a discriminação desses termos, substituindo-os por outros que eu vou mencionar daqui a pouco. O que há de interessante nos termos que vou apresentar é que eles não colocam sobre a pessoa o peso e a responsabilidade por aquilo que ela não consegue realizar. Um exemplo para ajudar a compreender o conceito: Eu sou considerado “deficiente”, “incapaz” de subir uma escada e de usar um banheiro comum... E o problema passa a ser meu, e não da escada ou do banheiro. Não posso pagar essa conta! Ao se construir uma escada, exclui-se todas as pessoas que não podem usá-la, ou o farão com dificuldades. E não são apenas os cadeirantes que são paralisados pela escada (e tentam nos convencer que o que me paralisa é uma simples lesão medular!): os idosos, as crianças mais novas, uma gestante... e quando a gestante passar a carregar o pimpolho num carrinho, lá estará a escada... Ou seja, a médio e longo prazo a escada vai atrapalhar a todos, já que todos esperam envelhecer.

Vamos transformar esta “cultura da deficiência”. Procure substituir os termos, que já será um bom começo:

Substitua ”pessoas com deficiência” e expressões correlatas (referindo-se ao coletivo) por “diversidade funcional”. Você estará se referindo sem qualquer preconceito às pessoas que funcionam de forma diferente daquela considerada “normal”.

Se precisar particularizar, use “diferença funcional”.

Eu, que uso cadeira de rodas, tenho uma diferença funcional que é física.
A Camila e o Carlos, amigos citados acima, se comunicam por meio de LIBRAS (uma língua visual-espacial) eles possuem uma diferença funcional lingüística.
A Ethel, minha querida amiga, que enxerga pelos olhos do Gem, e pelo tato, quando lê o braile, possui uma diferença funcional visual...

Vamos usar e abusar dessa nova terminologia! É uma forma rica e inovadora de lutar contra o preconceito, a discriminação e a exclusão dos diferentes.
* * *
Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física; deficiência sensorial; deficiência mental/ntelectual; terminologia sobre deficiência; cadeirante; cego; surdo.

5 comentários:

Anônimo disse...

Ray,
Sinceramente foi uma surpresa agradavel mesmo ao ler esse texto que fala sobre a palavra DEFICIENTE, e ainda mais me citou. Realmente concordo com vc nesse ponto, ainda mais quando usam a palavra " coitado",pois de modo nehum me agrada quando capto as palavras através da leitura labial. Não me considero como uma pessoa deficiente,( nesses termos segundo o dicionário Aurélio), e mas assumo minha surdez,mas com orgulho. É Claro que tem as desvantagens,mas não me impede de conquistar meu lugar e enfim ser feliz consigo mesmo. Então,temos que nos unir e lutar pra mostrar que essa palavra não tem sentido adequado. Ray,parabéns e vai fundooooooooooo! Beijão, Camila.

Anônimo disse...

Ray, com certeza não usarei mas a palavra "deficiência. Daqui para frente 'diferença funcional. E acima de tudo, sempre que ouvir o termo corrigirei pois como sabermos uma andorinha só não faz o verão.

Anônimo disse...

Ray,
Sou suspeita em dizer que gosto do que escreve e como escreve. Sua abordagem é sensível e leva seus leitores para uma reflexão a ponto de mudanças profundas de comportamento, como é o meu caso. Vc me fez refletir muito sobre meus atos e modos de agir. Já te disse e repito, "Vc é merecedor de todo sucesso". Que os anjos continuem te iluminando. Parabéns e vá em frente. Um abração, Patrícia Nacif

Unknown disse...

Cara o texto é reflexivo e muito bom. Pena que alguns de nós mesmos portadores de alguma deficiência as usamos como se fossemos algo sem valor e anormal. dias atrás encontrei um outro cadeirante em um shoping e ele começou a me falar de uma esteira que iriam colocar na areia da praia do leblon que facilitaria o acesso a praia. e ai começou a falar que assim seria melhor para afundar e tal.. sabe deprimente.Abraço cara! o blog é muito bom!

Unknown disse...

Ray,

Parebéns por suas idéias!!! Sou uma pessoa com diferença funcional(mielomeningocele), biólogo e vice-presidente de uma entidade que trata do problema aqui na minha cidade, Blumenau-SC. Fiquei maravilhado com suas idéias e, da contribuição das mesmas no sentido de mudarmos termos já ultrapassados como: "pessoas deficientes" e "pessoas com deficiência"

Um forte abraço
Fernando Bachmann