domingo, 21 de setembro de 2008

Anatomia da diferença - degustando a orelha (do livro)

Estou postando a orelha do Anatomia da diferença, para que você tome conhecimento do conteúdo do meu próximo livro.

Boa degustação!


Anatomia da diferença
Normalidade, deficiência e outras invenções
(Ray Pereira, Casa do Psicólogo, 2008)

Em 2003, Ray Pereira* lançou pela Casa do Psicólogo o livro Que diferença faz? Escolhas que marcam. Naquele trabalho o autor expõe o universo da deficiência a partir de um olhar existencialista, explorando flashes de sua própria história para fundamentar seu pensamento sobre a diferença e as escolhas que fazemos ao longo da vida. Em Anatomia da diferença: normalidade, deficiência e outras invenções o autor aprofunda sua discussão sobre a diferença. A deficiência, ampla e rigorosamente investigada para sua tese de doutorado, aparece agora como um instrumento para se discutir a diversidade funcional.

Anatomia da diferença situa a deficiência em um contexto histórico, cultural e vivencial que se aprofunda a cada capítulo, expondo ao leitor uma dimensão pouco explorada por autores cujo cabedal inclui, além de conhecimento teórico e visão crítica, a legitimidade conquistada pela vivência pessoal e direta com a deficiência. Temos aqui um autor que ousa abordar a diferença – e tudo o que foi socialmente construído em torno dela – com o rigor de um pesquisador, sem perder a sensibilidade, o respeito e a delicadeza fundamentais para se discutir uma questão que, sem sombra de dúvida, é essencialmente humana e comum a todos nós em alguma etapa da vida.

É fácil observar, seja na literatura ou na vida, que a deficiência está enquadrada em categorias distintas (cegos, surdos, paraplégicos...). Tal ‘critério’ tem sido usado há séculos e o prejuízo imediato dessa prática esconde uma realidade inquestionável, qual seja a de que cada pessoa é diferente, independente da forma como seu corpo funciona. Daí a tendência em se tratar a deficiência como uma manifestação que deve ser ‘curada’; ou seja, ela é percebida, senão de fato, pelo menos metaforicamente como uma doença para a qual o remédio amargo é a ‘normalização’, o ajustamento compulsório aos modelos considerados ‘normais’ pela sociedade.

Anatomia da diferença: normalidade, deficiência e outras invenções é um texto original, primoroso e atual. Tendo a diferença como ponto central, o autor discute questões típicas da contemporaneidade, como identidade, diversidade, inovações tecnológicas, a ciborguização e sua analogia com a monstruosidade, promovendo um debate intrigante em que a distinção normalidade x anormalidade perde seu sentido, da mesma forma que torna vazios os conceitos de deficiência e disfuncionalidade construídos ou retocados pela medicina e assimilados socialmente. O texto expõe de forma clara e contundente os bastidores da transformação da diferença funcional em algo nocivo e indesejável à sociedade.

Entre as crenças do senso comum e o olhar da ciência, o leitor é brindado com um texto sensível, capaz de revelar sentimentos, expectativas e realidades que não são, muitas vezes, coerentes com o preconceito e o estereótipo sociais a que as pessoas diferentes estão submetidas. Ray Pereira dá, assim, uma contribuição original e importante tanto para o meio acadêmico quanto para aquelas pessoas que desejam aprofundar seu conhecimento acerca das diferenças e da diversidade humana.

Celia Pessoa
Psicoterapeuta, Professora universitária e Mestre em Psicologia Social.

*Ray Pereira é doutor em Saúde Pública (Ensp-Fiocruz) e mestre em Psicologia Social (UGF-RJ). É graduado em Psicologia (UNESA) e Teologia (STBSB). Atua como psicoterapeuta e professor na cidade do Rio de Janeiro.

Vamos jogar "deficientes" no lixo!

Talvez você não saiba, mas pode, sim combater o preconceito. Há várias formas de preconceito e certamente eu e você sozinhos não podemos eliminar esta praga. Mas, há muita coisa que eu posso fazer e que você pode fazer. As pessoas com diferença funcional (aquelas que fora desse blog e em praticamente todo o mundo são chamadas de “deficientes”, “pessoas com deficiência”, “portadores de deficiência”...) enfrentam diariamente várias formas de preconceito implantadas e aceitas em todos os segmentos sociais: o preconceito muitas vezes começa em casa, se estende pela vizinhança, e alcança, com requinte de desatenção e desrespeito, os campos da educação, trabalho, lazer, sem deixar de fora os serviços e equipamentos públicos e urbanos.

Eu poderia discorrer sobre cada um dos campos citados, apontando o problema e propondo soluções, com conhecimento de causa e com a legitimidade que a cadeira de rodas e a longa experiência vivencial me conferem. Mas, o assunto de hoje são os termos utilizados para ser referir à diversidade funcional.

Você já parou para pensar no significado de termos como “deficiência”, “pessoa deficiente”, e o adjetivo “coitado”, corriqueiramente usado contra as pessoas com diversidade funcional? Mesmo nos dicionários mais resumidos, o significado é absurdamente incoerente e incompatível com a vida, o corpo, o desempenho e a dignidade de qualquer pessoa.

Vejamos, então, o significado desses termos, segundo o Aurélio, o mais tradicional dicionário da língua portuguesa

Deficiência: 1. Falta, falha, carência. 2. Imperfeição, defeito. 3. Insuficiência

Deficiente: 1.Em que há deficiência; falho, imperfeito. 2. Pessoa que apresenta deficiência física ou psíquica

A Organização Mundial da Saúde – OMS, que não é um dicionário, mas se assemelha ao Aurélio, também propõe uma definição (aliás, muito parecida com o significado apresentado pelo Aurélio):

Deficiência, para a OMS, é a perda ou anormalidade, temporária ou permanente, de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica.

Parece que os burocratas da saúde olharam apenas para os dicionários quando tentaram definir “deficiência”. Parece que ninguém olhou para o cotidiano das pessoas com diferença funcional. Se tivessem olhado, ou se tivessem, para efeitos de laboratório, colocado o trazeiro numa cadeira de rodas e saído para um curto passeio pelas ruas, praças e locais públicos, facilmente poderiam constatar que a tal “deficiência” não é uma condição restrita ao organismo, ou ao corpo da pessoa em questão. O ambiente participa ativa, senão exclusivamente, produzindo limitações, restrições, obstáculos, e por aí afora...

Ainda não se inclui ativamente o ambiente e a sociedade nas discussões sobre a diversidade funcional. Em termos práticos, exige-se de pessoas como eu, o Geraldo, a Beth, o Fabinho, a Camila, a Lília, o Carlos e o Carlinhos, a Ethel e milhares de outros (minha lista é grande, capaz de ilustrar milhões de posts...) nos adaptemos a um mundo e a uma sociedade criados e estruturados para aqueles que andam, falam, vêem e pensam conforme o formato padrão. Há cerca de dois ou três séculos, o formato padrão foi tomado como “normal” (aqui tem o dedo de algumas instituições poderosas, mas trato disso depois), massacrando qualquer pessoa que fugisse a essa norma.

Se voltarmos agora ao Aurélio e à OMS vamos entender tudinho. A falta, a falha, a imperfeição, a anormalidade etc, só existem porque somos comparados com o padrão que iguala a todos em termos funcionais. Foi adotado como “normal” andar com as pernas e de pé, ouvir e entender com os ouvidos, ver com os olhos. Dessa forma, ver com os olhos do Gem (o querido cão-guia de uma amiga do coração) e ler braile com os dedos, não é normal; como não é normal se comunicar em língua de sinais; como também não é normal usar cadeira de rodas...

E para todos nós, funcionalmente diferentes, quando somos vistos fazendo o que PARA NÓS é normal, somos admirados e elogiados e tratados como heróis (é moleza para um cadeirante ser condecorado como herói, qualquer pulinho que damos sobre um ressalto nos faz heróis!). Curiosamente, somos os únicos heróis cujos elogios recebidos são formulados com um toque sutil de piedade... “Coitados! Como lutam esses deficientes”. Tenho certeza que a Camila e o Carlos nunca ouviram esta frase; eles são surdos e a diferença funcional dos dois é na linguagem (Eles usam LIBRAS), mas, nós outros já ouvidos no mínimo alguma variação dessa frase.

Vamos pensar juntos no sentido de “Coitados!”, palavrinha horrível que a Camila e o Carlos, felizmente surdos, nunca ouviram.

“Coitado” vem de “coitar”, no sentido de afligir, desgraçar (há ainda um sentido sexual em “coitar” que eu não vou discutir aqui). “Coitado” significa também “desgraçado”, “mísero”, “pobre infeliz”...

Um dos sinônimos de “coitado” é “desgraçado”, que significa má sorte; infortúnio; miséria, penúria; infelicidade; privação da graça de alguém; desfavor; pessoa inábil, incapaz, inepta.

Pra encurtar o post, temos razões de sobra para jogar na lixeira termos como “deficiência”, “pessoa com deficiência”, “deficiente”, “coitado” e todos os outros amplamente utilizados para se referir à diversidade funcional.

Minha sugestão é que você ajude a combater o preconceito e a discriminação desses termos, substituindo-os por outros que eu vou mencionar daqui a pouco. O que há de interessante nos termos que vou apresentar é que eles não colocam sobre a pessoa o peso e a responsabilidade por aquilo que ela não consegue realizar. Um exemplo para ajudar a compreender o conceito: Eu sou considerado “deficiente”, “incapaz” de subir uma escada e de usar um banheiro comum... E o problema passa a ser meu, e não da escada ou do banheiro. Não posso pagar essa conta! Ao se construir uma escada, exclui-se todas as pessoas que não podem usá-la, ou o farão com dificuldades. E não são apenas os cadeirantes que são paralisados pela escada (e tentam nos convencer que o que me paralisa é uma simples lesão medular!): os idosos, as crianças mais novas, uma gestante... e quando a gestante passar a carregar o pimpolho num carrinho, lá estará a escada... Ou seja, a médio e longo prazo a escada vai atrapalhar a todos, já que todos esperam envelhecer.

Vamos transformar esta “cultura da deficiência”. Procure substituir os termos, que já será um bom começo:

Substitua ”pessoas com deficiência” e expressões correlatas (referindo-se ao coletivo) por “diversidade funcional”. Você estará se referindo sem qualquer preconceito às pessoas que funcionam de forma diferente daquela considerada “normal”.

Se precisar particularizar, use “diferença funcional”.

Eu, que uso cadeira de rodas, tenho uma diferença funcional que é física.
A Camila e o Carlos, amigos citados acima, se comunicam por meio de LIBRAS (uma língua visual-espacial) eles possuem uma diferença funcional lingüística.
A Ethel, minha querida amiga, que enxerga pelos olhos do Gem, e pelo tato, quando lê o braile, possui uma diferença funcional visual...

Vamos usar e abusar dessa nova terminologia! É uma forma rica e inovadora de lutar contra o preconceito, a discriminação e a exclusão dos diferentes.
* * *
Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física; deficiência sensorial; deficiência mental/ntelectual; terminologia sobre deficiência; cadeirante; cego; surdo.

Sobre o blogueiro...

Meu nome é Ray Pereira. Moro na cidade (apesar de tudo) maravilhosa, mas nasci em Manhuaçu, uma cidade aconchegante, escondida nas montanhas de Minas. Sou cadeirante desde os vinte anos, quando um acidente de carro mudou os rumos de minha vida. O que parecia ser o fim, representou, de fato, um recomeço, um novo e extenso aprendizado acerca de mim mesmo, do mundo e da vida. Aquele incidente foi, sem dúvida, um divisor de águas em minha vida.

Pouco depois do acidente decidi estudar. Meus objetivos agora tinham como foco principal o novo universo que se abriu para mim a partir do acidente. Estudei psicologia e me tornei terapeuta, profissão que exerço com muito zelo, seriedade e dedicação. Os estudos posteriores (formais e “apócrifos”) foram planejados pensando tanto em minha atividade profissional como no propósito de dar uma contribuição pessoal para a causa da diversidade funcional. Fiz mestrado em psicologia social e doutorado em saúde pública. O ponto de partida de toda a minha vida acadêmica foi uma formação em teologia, num seminário batista... foi estudando teologia que me apaixonei por psicologia, mas isto é uma outra história.

Nasci em Minas, como já disse, mas não sou fazendeiro, nem cafeicultor ou pecuarista. Também não sou mineiramente conservador e nem vendo queijos, mas amo pão de queijo e broa de milho. Atuo mesmo como psicólogo, mais especificamente como terapeuta de adultos e casais há mais de 10 anos. Atuo também como professor e como palestrante, abordando temas relacionados à psicologia e diversidade funcional. Eu também escrevo, mas não me considero um Escritor: três livros, por enquanto, (o terceiro chega às livrarias em poucas semanas) e alguns artigos acadêmicos retratam mais um perfil de estudante curioso, ou de um pesquisador, do que, propriamente, o de um escritor.
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.

sábado, 20 de setembro de 2008

Diversidade funcional...

Diversidade Funcional... A expressão pode parecer nova para você, mas a condição a que ela se refere não é. Basta sair, dar uma olhada à sua volta para dar de cara com a diversidade funcional. Desde os tempos mais remotos somos todos diferentes. E não há padrão de normalidade, costumes ou tecnologia capaz de eliminar a diferença como contingência humana. É isso: somos todos diferentes! Somos iguais, exatamente por sermos todos diferentes, com já bem disse Touraine.

Se ao invés de diversidade funcional eu falasse em "deficiência", certamente todos saberiam qual é o tema central do post de abertura desse blog. O embrião desse blog é uma idéia, um conceito para ser mais preciso. Lido com a diferença funcional há pouco mais de duas décadas. Sou cadeirante e esta condição (que transo muito bem!) me rotula com a conhecida expressão entre aspas, logo acima. Muitos termos e expressões já foram usados para se referir ao que todos nos acostumamos a chamar de "deficiência". Ao longo de muitas décadas, homens e mulheres com diferença funcional têm sido chamados de "pessoas com deficiência", "portadores de deficiência", "deficientes" (este último, proposto pela própria ONU, na década de 70)... os termos anteriores aos que acabo de citar eram ainda mais inadequados: "aleijado", "entrevado" (literalmente, aquele que vive nas trevas...) e assim por diante.

Pois bem, neste blog, o termo "deficiência", se aparecer, estará sempre entre aspas. Se você encontrar alguma ocorrência sem as aspas pode me dar uma bronca com B maiúsculo! Será um descuido imperdoável. E prá começar bem, "deficiência" não! diferença funcional, sim! Nos posts futuros você só encontrará diversidade funcional, diferença funcional e correlatos.

A preocupação com os termos para se referir às pessoas com diferença funcional é antiga, mas pouco ou nada bem sucedida em termos práticos. Todos os termos usados até então enfatizam a "falta", a suposta limitação física, tomando como base o tal padrão de normalidade engendrado pela ciência moderna e pela medicina pós-newtoniana. Nosso corpo - assim como o universo - deixou de ser o mesmo depois da física de Newton. Ao tocar o corpo humano, a visão mecanicista do universo exagerou na metáfora: passamos a ser vistos, de fato, como uma máquina. O coração, os rins, os pulmões, braços e pernas encontraram correlatos nos instrumentos, ferramentas e artefatos mecânicos. O coração é um bom exemplo da mecanização do corpo: a antiga "sede dos sentimentos" perdeu seu lirismo, tornando, para todos os efeitos, uma bomba que regula a circulação sangüínea.

O modelo de homem padrão tornou-se um conceito, uma medida com a qual se avalia o desempenho do corpo e das pessoas. O que não cabe nesta medida é descartado, é inadequado, é inferior, é nada. O que ficou conhecido como "deficiência" foi inventado exatamente dessa forma. O funcionamento dos órgãos e partes do corpo precisou ser adjetivado desde então; e a chamada "deficiência", embora gramaticalmente um substantivo, tornou-se, para efeitos práticos, um adjetivo de exclusão... "deficiência" é exatamente isto: ineficiência.

Eu, um cadeirante que me locomovo de forma diferente (o modelo de homem padrão exige que a locomoção seja exclusivamente através da força e funções musculares das pernas. E de pé!), cheguei a essa condição, a esse lugar bem depois da criação de qualquer rótulo. Em 1984, depois de uma viagem, depois de um acidente. Saí de casa como andante e voltei como cadeirante, com uma paraplegia trazida não pelo acidente, mas pela reprovação no teste imposto pelo padrão de normalidade. Depois de uns bons anos "andando diferente" e sendo visto e tratado como uma pessoa fisicamente ineficiente, compreendi muito bem tudo isso. O que chamam de ineficiência física é para mim uma simples e corriqueira diferença funcional

Nos próximos posts vou explicar o que significa, de fato, "deficiência". Espero que juntos joguemos fora os termos obsoletos e desrespeitosos e que a diversidade funcional seja um conceito compreendido e assimilado por todos.

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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.