domingo, 22 de novembro de 2009

Sexualidade e diferença funcional

Sexualidade é um dos aspectos mais instigantes da experiência humana. E, claro, não poderia ser diferente em se tratando de nós, pessoas com diferença funcional. Nossa sexualidade esta cercada de curiosidades e intriga a todos.

Exatamente como acontece com a população em geral, há entre nós pessoas realizadas e pessoas frustradas, pessoas felizes e pessoas infelizes no plano afetivo-sexual. De fato, uma diferença funcional não deve ser tomada como um obstáculo para o amor. Se olharmos com atenção, os obstáculos são produzidos pelo preconceito, pela desinformação, medo e insegurança.

Com raras exceções, as pessoas com diferença funcional sabem que se estamos vivos, há, sim, energia sexual em nosso corpo e em nossa vida. Sabem, mas muitas vezes esse saber é silencioso, solitário, ignorado ou reprimido.

É importante lembrar que o medo e as dúvidas que paralisam a vida sexual e amorosa fazem parte da mesma estrutura psicológica que impede uma pessoa de acreditar em si mesma. A título de comparação, muitas pessoas com diferença funcional não se acham capazes de estudar, trabalhar e viver a vida. E é muito confortável acreditar que as coisas não acontecem apenas por causa da discriminação e da exclusão social. As barreiras sociais realmente estão aí escancaradas! Mas, me preocupam muito mais aquelas barreiras que construímos dentro de nós.

Eu sei que o preconceito e as barreiras sociais também afetam, e muito, a vida sexual e os relacionamentos amorosos. Mas, além e acima disso está a percepção que temos do nosso corpo, da nossa sexualidade e do nosso desejo de construir uma relação amorosa. Já ouvi diversas vezes afirmações do tipo “ninguém vai gostar de mim desse jeito”. E com base nessa crença, a pessoa se fecha tornando-se incapaz até mesmo de perceber quando é paquerada ou olhada com desejo.

A sexualidade humana tem sido massacrada por uma cultura que restringe a vida sexual a um padrão meramente estético e genital. Se dependesse apenas desses dois fatores, as relações amorosas seriam vazias de realização, de cumplicidade, de companheirismo e, especialmente, de afeto. Se você está vivo, independente de qualquer aspecto físico ou funcional, sua energia sexual está aí pulsando no seu corpo e você é, sim, capaz de dar e receber afeto, você é capaz de amar e ser amado(a), inclusive no aspecto estritamente sexual!

Tenho observado em meu trabalho que as dificuldades na vida sexual e nos relacionamentos amorosos dependem de vários fatores. Há casos em que a ajuda médica e psicológica é fundamental para se contornar as questões próprias do organismo. Esta é a parte mais simples, uma vez que a medicina dispõe de recursos eficazes para nos ajudar, quando necessário. De fato, os maiores obstáculos não estão no nosso corpo e muito menos na forma como ele funciona. Os obstáculos mais difíceis estão na nossa cabeça e à nossa volta.

Nossa cabeça cria medos incríveis. Medo da rejeição, medo de correr riscos, medo de sofrer, Medo de errar e até mesmo medo de acertar... Enquanto acalentamos nossos medos, a vida passa e a fila anda.

Há pessoas com diferença funcional que nem cogitam namorar e ter uma vida sexual de qualidade. Surgem aqui duas situações distintas, mas igualmente paralisantes: De um lado, temos os medos e as inseguranças pessoais; do outro, temos as atitudes familiares que infantilizam e superprotegem a pessoa com diferença funcional.

Certa vez uma mãe afirmou para mim que nenhuma mulher no mundo faria pelo filho cadeirante o que ela faz. Eu repliquei dizendo que uma namorada, uma mulher também faria coisas com ele que uma mãe jamais faria. Convenhamos: Mãe é mãe. Mulher é mulher. É óbvio que a regra vale para qualquer pessoa com diferença funcional, seja homem, seja mulher.

A dedicação e o cuidado oferecidos a uma pessoa com diferença funcional suprem necessidades higiênicas, ajuda na mobilidade e atividades da vida diária, etc. Embora as mães estejam na linha de frente dessas tarefas, qualquer pessoa devidamente preparada pode fazer esse trabalho. Mas isso não é tudo na vida de uma pessoa com diferença funcional!

Nós precisamos de realização pessoal e nossa vida precisa ter sentido! A necessidade de realização e sentido pode ser suprida de várias formas. Mas, eu quero destacar especialmente a realização amorosa. Esta realização implica dar e receber afeto, amar e ser amado(a) no sentido erótico do termo.

Se você possui uma diferença funcional e deseja realizar-se no plano afetivo-sexual, vá à luta! Mas faça isso com bom senso e responsabilidade. Se você convive com alguém que possui uma diferença funcional, tente (mas tente mesmo!) respeitar esse desejo...


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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; sexualidade e deficiência; psicoterapia; relações familiares e deficiência; Ray Pereira.

sábado, 21 de novembro de 2009

Orientação aos Pais - parte II


Legendas do vídeo “Orientação aos Pais - parte II”
http://www.youtube.com/watch?v=IzXfPFXjy-I


O nascimento de uma criança é algo realmente marcante na vida dos pais. É um momento de alegria, especialmente se a criança nasce com saúde e “perfeita”. Quando essa expectativa NÃO se concretiza, a alegria se transforma em angústia, medo... Algumas vezes a alegria se transforma em tristeza, frustração e culpa.

A chegada de uma criança com diferença funcional quebra todas as expectativas dos pais. E num tempo muito curto é preciso se acostumar com a idéia e seguir em frente. Os pais olham para a criança e a preocupação com a vida e o futuro é imediata, pois o mundo lá fora não é nada confortável para as pessoas com diferença funcional.

Quando penso nas crianças, minha preocupação inicial não é com o mundo lá fora. Me preocupa muito mais o que a criança encontra dentro da própria casa, junto à família, junto aos pais. Nesse contexto, o que há de mais inadequado e danoso para uma criança com diferença funcional são as comparações. Isto vale para todos os pais, mas vale especialmente para pais de crianças com diferença funcional.

Quando você, pai ou mãe, compara uma criança com a outra, você está dizendo qual delas é a preferida, qual delas você gosta mais. É assim que a criança percebe! Esta atitude é péssima para a autoestima de qualquer criança. Em se tratando de uma criança com diferença funcional, é ainda pior.

Ao invés de comparar, elogie a criança pelo que ela é capaz de fazer. Valorize o que ela faz, da forma que ela faz. A criança certamente responderá fazendo ainda melhor.

Aceitar e respeitar a diferença funcional de uma criança, com suas peculiaridades, limites e potencial é uma forma simples e eficaz de investir na autoestima dela.

Nós que lidamos profissionalmente com as diferenças funcionais falamos muito a respeito da discriminação e do preconceito fortemente arraigados na sociedade. Denunciamos a exclusão como um comportamento social, como uma falta de atenção política ou governamental... Discriminação, preconceito e exclusão são, sim, problemas de ordem social. Mas, há também outra dimensão desses mesmos problemas. Uma dimensão muito pouco explorada: a dimensão familiar.

Preconceito, discriminação e exclusão podem sim ser muito fortes no âmbito da própria família. Talvez você nunca tenha parado para pensar nisto, mas quando se compara dois irmãos, manifestando a preferência por um deles, isto é, na verdade, uma versão doméstica da discriminação social.

Se vocês, pai e mãe, se preocupam com a vida e o futuro da criança com diferença funcional, evite, ao máximo, plantar a insegurança na cabecinha dela. Nossa casa é a grande escola que nos ensina a lidar com o mundo. Então, ensine ao seu filho que ele é importante, que ele é capaz. Dessa forma, o mundo lá fora jamais poderá convencê-lo de que ele é inferior por ser diferente.

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Descrição do vídeo:
Os pais devem evitar fazer comparações entre os filhos. A criança com diferença funcional deve ser elogiada e valorizada pelo que faz, da forma que faz. Esta é uma forma simples e eficaz de investir na autoestima da criança.
Apresentação: Ray Pereira
Interpretação: Adriana D. Pereira
Ray Pereira é Psicólogo, mestre em Psicologia Social e doutor em Saúde Pública.
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quarta-feira, 20 de maio de 2009

Orientação aos Pais - parte I

Legendas do vídeo “Orientação aos Pais - parte I”

Ter filhos é o maior sonho de muitos casais. É um sonho relativamente fácil de realizar, e quando se pensa no filho que um dia vai chegar, o casal deseja, antes de mais nada, que a criança chegue com saúde e “perfeita”. Se a chegada de uma criança muda a rotina da família, a chegada de uma criança com alguma diferença funcional muda completamente a vida dos pais e da família. O choque inicial é muito natural, afinal vivemos em uma sociedade que infelizmente não sabe conviver com as diferenças. Mas esta realidade precisa mudar. E nós – eu, você, nós todos – somos agentes dessa mudança.

Se você possui uma criança que nasceu diferente do esperado, há muito que aprender com essa experiência... Tenho certeza que grande parte da sua angústia foi produzida por uma imagem negativa acerca das pessoas com diferença funcional. Jogue fora essa imagem negativa; ela não ajuda em nada o seu relacionamento com essa criança. Um olhar negativo torna a realidade mais difícil e mais dura do que ela é de fato.

Percebo o quanto os pais ficam perdidos, sem saber como agir, sem saber o que fazer. E por estarem perdidos, tratam seus pequenos apenas como doentes, ou como uma criança especial. De fato, qualquer criança é especial. Por isso, quando uma criança é tratada como especial apenas por ser diferente, ao invés de atenção ela está recebendo sobre si um estigma.

A infância das crianças com diferença funcional é sufocada por uma rotina de cuidados que são, até certo ponto, necessários. Mas, há também muitos excessos produzidos pela superproteção, medos e pela insegurança dos pais. Há uma variedade de profissionais preparados para promover qualidade de vida e um desenvolvimento saudável para os pequenos, mesmo nos casos mais complexos. Mas o suporte técnico e profissional não é tudo... Aliás, o resultado desse suporte depende muito do apoio emocional e lúdico que a criança precisa ter em casa.

Pode parece óbvio, mas eu preciso dizer: Um criança com diferença funcional precisa ser aceita, acolhida e amada. É fundamental para qualquer criança sentir que é amada, que é aceita, que é importante. Dessa forma, sua criança vai se sentir especial, no sentido mais belo do termo. Ser uma criança especial por ser amada e aceita é bem mais digno do que ser especial apenas por ser diferente.

Uma criança amada se desenvolve melhor. Uma criança amada aprende melhor. Uma criança amada é uma criança feliz!

Além de ser aceita e amada, a criança precisa brincar, a criança precisa ser criança. Uma diferença funcional não deve ser tomada como uma doença, ou como algo que impeça a criança de ser criança. Se seu filho não brinca, o problema pode estar em você, e não nele. Não importa o rótulo que a escola, a medicina ou a sociedade deu para seu filho, ele é uma criança e como criança ele precisa ter infância.

A rotina de uma criança com diferença funcional muitas vezes é pesada e difícil. Se em meio a essa rotina a criança puder ser criança, certamente a vida será divertida e o mundo parecerá menos hostil aos olhinhos dela. Observe sua criança enquanto ela brinca... você se sentirá mais leve ao perceber que há muita vida pulsando naquele corpinho que você acha tão frágil.

Criança que brinca torna-se mais espontânea, mais independente. Criança que brinca tem mais saúde. E como nada no mundo vale mais que um sorriso de criança, uma criança que brinca sorri mais.

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Descrição do vídeo:
A criança com diferença funcional precisa ser aceita e amada. Além do apoio profissional e técnico. O suporte emocional e lúdico deve fazer parte da rotina da criança.
Apresentação: Ray Pereira
Interpretação: Adriana D. Pereira
Ray Pereira é Psicólogo, mestre em Psicologia Social e doutor em Saúde Pública.
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segunda-feira, 11 de maio de 2009

Qual é o seu sonho?


Legendas do vídeo “Qual é o seu sonho?”
http://www.youtube.com/watch?v=KiWJIDSXDHI

Oi! Eu tenho uma pergunta pra você: Qual é o seu sonho?
Se for necessário, acione Legenda Oculta.

Se você possui uma diferença funcional, certamente já te perguntaram “o que aconteceu com você”. Certa vez, respondendo a essa mesma pergunta, quando revelei o que havia acontecido, perguntaram-me se o acidente me impediu de realizar algum sonho, afinal eu tinha apenas 20 anos quando tudo aconteceu. É claro que alguns sonhos ficaram para trás, mas outros resistiram ou foram reinventados. E novos sonhos foram nascendo, já que ninguém perde a capacidade de sonhar.

As diferenças funcionais costumam ser encaradas como fatos que aniquilam todos os nossos sonhos. Para mim, e para muitos outros, essa percepção negativa é falsa. Nossas diferenças funcionais não destroem nossos sonhos, embora um ou outro pareça impossível em função de limitações que extrapolam a nossa vontade, como as características ou limitações do corpo, os obstáculos do meio físico, a exclusão social, ou os limites da própria ciência.

Abolir as limitações do corpo é um sonho acalentado por muitos e, ao que tudo indica, esse sonho há de se realizar, tendo em vista os recentes avanços tecnológicos. O que poderia ser apenas um sonho torna-se um pesadelo para muitos que deixam de viver intensamente a vida para tão somente esperar que o sonho de voltar a ser como antes, de alguma forma, se realize. Há pessoas com diferença funcional que adiam tudo para o futuro acreditando que para se viver, sonhar e realizar, é preciso antes modificar o padrão de funcionamento do próprio corpo. Bem, seja por milagre, seja pelo avanço das ciências, ou pelo que for, onde quer que esteja ancorada nossa esperança, crença ou desejo, a espera pode ser longa e pode até não acontecer da mesma forma para todos.

Depois de mais de duas décadas como cadeirante, aprendi que não é a condição física que paralisa uma pessoa. Aprendi também, e estou convicto, que uma cadeira de rodas não atropela nem destrói nossos sonhos. Reconheço e sei o quanto é difícil superar barreiras físicas, econômicas e sociais. Mas, nenhuma dessas barreiras é tão poderosa quanto as barreiras psicológicas criadas pela própria pessoa. As barreiras internas, estas sim, podem destruir sonhos e paralisar a vida de qualquer pessoa.

Acidentes de carro parecem trazer a morte de carona, por isso sobreviver a um acidente deveria ser entendido como um renascimento. Nós, supostas vítimas, determinamos o sentido desses incidentes. A partir deles, muitos se fecham e vivem presos ao passado, enquanto outros se erguem ávidos por novos sonhos, novos vôos e fazem a vida acontecer.

Partir para novos vôos, traçar novas metas ou sonhar novos sonhos é sempre possível, mesmo para aqueles que um dia se fecharam para a vida. Quando deixamos de acreditar em nossos sonhos, o mais simples deles pode parecer ousado demais, ou mesmo impossível, como se nossa capacidade de realização estivesse aniquilada.

Muitos sonhos se perdem não por serem impossíveis ou absurdos. De fato, sonhar é bem mais simples do que realizar. Construímos nossos sonhos sem o menor trabalho, mas, é muito pouco provável que algum sonho se concretize espontaneamente. É tarefa minha e sua a realização de qualquer sonho. Se o acaso, as circunstâncias ou mesmo a sorte cooperarem, ótimo! Mas, nem sempre é assim.

Alguns incidentes da vida podem apagar um sonho ou outro. Mas, independente das circunstâncias, muitos sonhos se perdem por absoluta falta de confiança, determinação e trabalho. Nossos sonhos podem, sim, se transformar em metas, em projetos, em aspirações e ideais. E o que faz mesmo diferença é exatamente a confiança, o empenho e a determinação em busca de realizações.

Usar uma diferença funcional como justificativa para não sonhar não cola, pois sua plena capacidade de sonhar e realizar está intacta em algum lugar aí dentro de você. A vida quer dar muito mais a você. E ela pergunta todos os dias: Qual é o seu sonho?

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Autoestima e diferença funcional

Tenho recebido e-mails e scraps comentando os dois últimos vídeos postados no Youtube. Algumas dessas mensagens eu gostaria de ver publicadas no fórum da comunidade Diversidade Funcional, mas nem sempre isso ocorre. Algumas pessoas preferem fazer contato de forma mais reservada e isto precisa ser respeitado.

Depois de ler os e-mails e scraps achei que seria interessante postar as legendas dos vídeos “Qual é o seu sonho” e “Autoestima e diferença funcional”. Há dois outros vídeos cujo conteúdo foi baseado em textos postados anteriormente no blog (“Vamos jogar “deficiente” no lixo” e “Entre diferenças e diferenças”). Os interessados poderão copiar o texto original.
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Legendas do vídeo "Autoestima e diferença funcional"

http://www.youtube.com/watch?v=911BSHwaQP8

Olá! Nós preparamos para você um vídeo sobre autoestima e diferença funcional.
Se for necessário, acione Legenda Oculta.

Falar sobre nossos sentimentos não é nada fácil. Falar sobre o sentimento que temos acerca de nós mesmos é ainda mais desconfortável. De todos os sentimentos humanos, a autoestima é o que há de mais básico, pois dela depende a qualidade de todos os outros sentimentos.

Autoestima, antes de mais nada, é o valor que eu próprio me dou, é a estima que eu tenho por mim, é a consciência que tenho do meu valor, da minha dignidade.

Uma boa autoestima facilita o desenvolvimento da autoconfiança e fortalece o amor próprio. Esses dois elementos são verdadeiras ferramentas para se enfrentar a vida. O primeiro deles, a autoconfiança, é uma segurança íntima na própria capacidade de pensar, escolher, decidir e agir. O segundo elemento, o amor próprio, é um senso básico de respeito por si mesmo que faz uma pessoa considerar-se importante, especial e capaz de realizar-se como pessoa. Com autoconfiança eu me lanço e acredito em mim. Com amor próprio eu cuido de mim, me valorizo e me respeito.

Nossa autoestima pode ser percebida na forma como encaramos a vida e reagimos às contingências e circunstâncias que nos cercam. Problemas familiares, doenças, crises e frustrações pessoais podem comprometer nossa autoestima se ela não estiver bem estruturada. Mas, se temos uma boa autoestima, não perdemos a noção do nosso valor mesmo quando estamos sufocados pelas circunstâncias da vida.

Com nossa autoestima frágil, em situações adversas podemos nos acomodar, ou agir apenas para evitar que o sofrimento aumente, mantendo assim o desconforto em níveis suportáveis. Por outro lado, com uma autoestima elevada, as ações serão sempre positivas e transformadoras em favor da própria vida e do bem-estar pessoal.

Agora vamos pensar um pouco sobre autoestima e diferença funcional. Quando digo “diferença funcional”, eu me refiro às situações que a sociedade chama de “deficiência”. Poucas situações abalam tanto a vida de uma pessoa quanto uma diferença funcional. Qualquer evento que altere a harmonia do corpo toca diretamente a autoestima. As seqüelas provocadas por acidentes e doenças podem alterar a forma como o corpo funciona. Quebrada a harmonia, a relação com o corpo ficará comprometida.

Quando um evento altera a estrutura e o funcionamento do corpo, isto, sem dúvida, influencia a vida pessoal, afetiva, sexual, familiar, profissional e social. E é claro que a autoestima também fica abalada, afinal, vivemos em uma sociedade que ainda não aprendeu a respeitar e integrar plenamente as pessoas com diferença funcional. Mas, ainda assim, ainda assim é possível desenvolver um sentimento positivo acerca de si, fortalecer a autoestima e reinventar a própria história. Afinal, não podemos controlar os fatos, mas podemos decidir, por nós mesmos, o que fazer com os fatos, com o nosso corpo e com a nossa vida.

A expectativa social acerca da diferença funcional é sempre negativa. Por isso pode parecer impossível ter uma boa autoestima se temos uma diferença funcional. A relação entre baixa autoestima e diferença funcional é tão falsa quanto dizer que todo cadeirante é revoltado.

Conheço bem de perto histórias que comprovam que a autoestima pode ser fortalecida mesmo quando tudo parece perdido. São histórias de pessoas que passaram a se conhecer mais e a amar mais a vida, numa demonstração clara da força do nosso querer. Mas, há também histórias amargas, de pessoas que não conseguem desenvolver um sentimento positivo sobre si, e perdem a vontade de viver.

Quando penso e reflito sobre tudo isso, percebo com muita clareza que para se ter um sentimento positivo de si, para se gostar e ter uma boa autoestima é preciso compreender que o meu valor como pessoa, como ser humano, não pode ser medido a partir da maneira como funciona o meu corpo.

Precisamos compreender que a vida, apesar de tudo e apesar de nós mesmos, é bela, é muito curta, e precisa ser vivida. Quando gostamos de nós do jeito que somos, a vida se torna mais leve, e vivemos melhor.

E a vida continua, mesmo quando um ou outro escolhe ficar para trás.

Eu sou Ray Pereira. Minha intérprete é Adriana D. Pereira.
Visite o blog Diversidade Funcional: http://diversidadefuncional.blogspot.com

domingo, 12 de abril de 2009

Quiron: sábio, curador e diferente

(Descrição: A figura inserida no texto mostra Quiron ensinando harpa ao garoto Aquiles)

Quiron é um centauro. Uma belíssima figura mítica que a mitologia grega nos doou. Pensando em mitologia e diferença, a história de Quiron é bastante ilustrativa para tratarmos da realidade existencial das pessoas com diferença funcional.

Os centauros são seres míticos, metade homem, metade cavalo. Ou seja, Quiron é a diferença encarnada mesmo no contexto da mitologia, farto de personagens fantásticos. No corpo diferente de Quiron habita o eterno conflito entre o homem e o animal, entre o civilizado e o não-civilizado. O personagem é mítico, mas o conflito é absolutamente humano e atual.

O mito de Quiron é riquíssimo para a diversidade funcional. Farei um breve relato sobre a história desse centauro, para compreendermos o seu mito. Se você, como eu, possui uma diferença funcional, certamente perceberá algo de comum no ar.

Quiron era filho de Crono e da ninfa Filira. Temendo ser destronado por um filho, Crono habitualmente devorava seus filhos. Sua esposa, Réia, não aprovava o hábito de Crono e resolveu esconder um filho do marido, evitando que este fosse devorado também. O filho em questão era Zeus. O encontro entre Crono e Filira aconteceu quando ele procurava por Zeus, querendo devorá-lo. Nessa busca, Crono encontra Filira e se encanta com a beleza da ninfa.

Crono deseja ardentemente Filira. Ali começa uma perseguição e Filira, para escapar de Crono, transforma-se numa égua para despistá-lo, mas, não adiantou. Para enganá-la, Crono, por sua vez, se transforma em cavalo, alcança Filira e a possui. Desse encontro nasceu Quiron, o centauro com corpo e pernas de cavalo, torso, braços e cabeça de homem.

Filira fica perturbada ao ver o filho... um “bebê-monstro”, muito diferente do esperado. Quiron foi rejeitado pela mãe e nunca conheceu o pai... Daqui em diante a história desse centauro apresenta desdobramentos muito familiares para nós que também somos diferentes. O susto e a atitude de Filira ocorreram porque a diferença assusta, incomoda, perturba.

O pai substituto de Quiron faz qualquer filho abandonado agradecer aos céus o pai e a mãe que não teve. A mãe de Quiron virou paisagem (a bela ninfa foi transformada em árvore) e o filho abandonado teve como pai (nada de pai adotivo, afinal, pai é quem cria!) ninguém menos que o genial Apolo, um dos deuses mais importantes do Olimpo.

Ao assumir Quiron, Apolo torna-se também seu mentor. Dessa forma, Quiron tornou-se um sábio. Era também professor, profeta, músico... Seus poderes de cura eram notáveis e foi ele quem ensinou medicina a Asclépio. Quiron foi mentor de muitos heróis gregos, como o já citado Asclépio, Aquiles, Jazão e Hércules. O centauro mais famoso da mitologia grega sabia tudo sobre artes e perícias que garantiam a sobrevivência, como a caça, a arte da guerra, o domínio do arco, etc. Fora do campo da sobrevivência, Quiron também era notável por seus conhecimentos sobre ritos religiosos, ética, ciências naturais e música.

Além da diferença encarnada, o que mais nos aproxima de Quiron é uma ferida muito peculiar: uma ferida incurável, provocada por um amigo! A ferida em questão foi causada pelo arco de Hércules. Uma flecha envenenada, disparada contra outro centauro, fere acidentalmente a coxa de Quiron, produzindo a ferida incurável. Esse aspecto é o mais relevante do mito de Quiron.

Embora dominasse as artes médicas, Quiron não podia curar a própria ferida. Essa contingência fez dele um curador. Enquanto tratava e curava os outros, Quiron encontrava alívio para o próprio sofrimento.

O mito de Quiron coloca em relevo a importância de se encarar de frente nossas dores e feridas. Esta é a condição básica para qualquer cura. Enquanto negamos e fugimos, neutralizamos o efeito de qualquer recurso terapêutico, seja médico, psicológico ou mesmo espiritual e transcendente. A negação não abranda a dor. Ao contrário, aguça e intensifica o sofrimento.

Pensando em diferença funcional... quando negamos nossa diferença, estamos bloqueando uma característica que pode, se quisermos, ser transformada em uma virtude. Nós é que damos o tom de tragédia para uma dor ou diferença que, em princípio, é apenas uma dor ou uma diferença. Enquanto sofria, Quiron ensinava, orientava e curava. Ou seja, vivia a vida e seguia em frente, a despeito de uma coxa irremediavelmente ferida.

Além da dimensão existencial, há aqui uma diferença funcional, produzida por uma pata ferida. Quanto à dor e à ferida, elas eram permanentes. Sim, eram permanentes. E nem por isso Quiron deixou de viver e cumprir com excelência seu papel de curador, mentor e sábio.

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Palavras-chave: mitologia e deficiência; mitologia grega; Quiron; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; Ray Pereira.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Tirésias, o cego que enxerga

(Descrição: A figura inserida no texto mostra Tirésias de pé, segurando um cajado, ao lado de Ulisses, sentado, com sua espada à mão)
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Tirésias é um personagem bem mais popular que Hefestos e Procrusto, nomes que ilustram os textos anteriores. Como profeta e adivinho, seu nome está vinculado ao Oráculo de Delfos, situado no interior de um templo consagrado a Apolo. Sua presença e sua fala reveladora permeiam vários mitos e atravessam a história de vários personagens míticos.

Tirésias era um ser fascinante, incomum e paradoxal. Era cego. Um cego que enxergava longe e fundo, pois lhe faltava a luz, mas sobrava-lhe sensibilidade e lucidez. Sua percepção da sexualidade também era paradoxal, acumulando vivências tanto masculina como feminina em um corpo de homem, como veremos mais adiante.

Há uma polêmica literária quanto à origem da cegueira de Tirésias. Minha versão preferida é a que trata de uma discussão entre Zeus e Hera, O casal queria saber se o ato sexual seria mais prazeroso para o homem ou para a mulher. E quem foi convocado ao Olimpo para decidir a polêmica? Ninguém menos que Tirésias, a única pessoa com conhecimento de causa sobre as particularidades íntimas de cada sexo. Vejamos, então, a origem do conhecimento e da cegueira de Tirésias:

Conta a lenda que o jovem Tirésias foi orar no monte Citeron. No caminho deparou-se com um casal de serpentes copulando e elas o atacaram. Tirésias então matou a serpente fêmea... e imediatamente se transformou em mulher. Anos mais tarde, indo orar no mesmo monte, Tirésias se depara novamente com um casal de serpentes, e novamente é atacado. Ele então mata o macho e volta a ser homem. Tirésias foi, portanto, um homem que conhecia a natureza e peculiaridades dos dois sexos. Daí sua convocação para resolver a polêmica entre Zeus e Hera.

Tirésias ficou numa posição delicadíssima entre Zeus e Hera. Ele sabia que uma resposta, qualquer que fosse, desagradaria um dos deuses. Hera dizia que o homem tem mais prazer; Zeus dizia que era a mulher. Tirésias então se manifesta: Se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove, o homem fica com uma parte. Hera entendeu que a resposta de Tirésias privilegiou o homem e a posição de Zeus, pois as nove partes da mulher seriam proporcionadas pelo homem. Num ataque de fúria, Hera o cegou. Zeus, por sua vez, compadeceu-se de Tirésias e o compensou com o dom de conhecer o futuro, fazendo dele um vidente.

Fora do mundo dos mitos, as diferenças funcionais “esbarram” o tempo todo nos objetos do mundo real. Se nós, cadeirantes, com nossa diferença funcional física, somos obstruídos por escadas, ressaltos, portas estreitas e outros obstáculos concretos, para os companheiros com diferença funcional visual o grande obstáculo é a forma, a estrutura criada para ser vista. Apreender a forma, seja pelo toque da bengala, seja pelos olhos do cão guia ou com o toque-tato, eis o desafio da diferença funcional visual: captar a forma e o sentido do concreto sem precisar ver... ou seja, a diferença funcional é exatamente isto: enxergar, apesar de não ver. Tirésias!

No passado, para se deslocar no escuro, para preservar e transmitir tradições tribais orais não se convocava as pessoas que viam apenas com os olhos. Aqueles, cujos olhos funcionavam, eram de fato deficientes para tais tarefas. Na escuridão, era preciso enxergar diferente para encontrar o caminho que só se via na luz... Para preservar a história, era preciso memorizar sem se distrair com as formas iluminadas, captadas pelos olhos “sãos”.

De olhos fechados, sim, de olhos fechados abstraímos, exploramos, sentimos, gozamos, criamos meditamos e falamos com Deus. De olhos fechados, enxergamos. Tirésias!

Mal abrimos os olhos e a retina se sobrepõe aos outros sentidos, cedendo aos apelos de um mundo visual. Mal os olhos se abrem e apenas vemos. Aprendendo com Tirésias, na mitologia, e com Saramago, na literatura, “se pode ver, repara.”

Mas, se é preciso apenas ver, vale a velha bengala, os olhos do cão guia, o braile, o texto acessível, o tato... Não incluo aqui a pele. Em se tratando da diferença funcional visual, a pele é Tirésias!

Nos próximos textos, mais mitologia Grega e Diversidade Funcional. Aguardem!

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Palavras-chave: mitologia e deficiência; mitologia grega; Tirésias; cegos; cegueira; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; Ray Pereira.

sexta-feira, 20 de março de 2009

O mito de Procusto: normalidade a qualquer preço (final)

(Descrição: A figura inserida no texto mostra Procrusto na cama, diante de Teseu, que ergue o machado para cortar-lhe as pernas.)
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A cidade de Coridalos e arredores tornou-se um inferno. Procrusto era temido e muito amaldiçoado por seus atos. Os gritos dos mutilados eram ouvidos por toda a Grécia, até que uma deusa decidiu intervir. Palas Atena, deusa guerreira e símbolo da sabedoria quis saber o que acontecia. Procrusto justificou seus atos dizendo que agia conforme a justiça e a razão: “As diferenças são injustas, pois permitem que uns se sobressaiam e subjuguem os demais”. Convicto, ele afirmou: “Minhas camas acabam com as diferenças, igualando a todos os homens. Isto é justo. Isto é razoável.”

Palas Atena ficou sem palavras! Decepcionada, a deusa voltou ao Olimpo. O silêncio de Palas Atena reforçou a crueldade de Procrusto. Para ele, aquele silêncio era um sinal de aprovação. Dessa forma, Procrusto continuava impune eliminando cruelmente as diferenças. Em seu desvario, enquanto mutilava ele expunha suas razões para cada vítima...

Felizmente, tanto na mitologia como em nossa vida cotidiana, há trabalhos que somente os humanos podem fazer. São circunstâncias e ações humanas nas quais os deuses ficam de fora. Entre os gregos havia os heróis que, de certa forma, poupavam os deuses do “trabalho sujo”. Fazendo valer essa regra, a deusa Palas Atena ficou muda e impotente diante do gigante, mas o jovem herói, Teseu, o encarou de frente. O vigor físico de Teseu era impressionante! Antes de conhecer o gigante, em sua lista de feitos heróicos já constava a eliminação de alguns monstros e malfeitores.

Alienado em sua crueldade, Procusto achou que a visita de Teseu fosse amistosa... Ele se autopromove sem o menor pudor: “Convenhamos, bravo Teseu, minhas ações são todas muito razoáveis e justas. Até mesmo a deusa Palas Atena veio me visitar; quando expus minhas razões, caro Teseu, ela simplesmente nao soube o que dizer”.

A resposta de Teseu deu fim aos suplícios de Coridalos: “Louco! As pessoas são diferentes e cada um tem o direito de ser como é, uns grandes, outros pequenos. Não é justo igualar os homens, impedindo que cada um seja como é”. Enquanto ensina um pouco de ética e justiça, Teseu joga Procrusto em uma das camas, submetendo-o ao seu próprio método. Depois de ter as pernas decepadas, o ex-gigante exclama “eu só estava sendo justo!”. Teseu quis que o gigante experimentasse o próprio remédio. Mesmo sem parte das pernas, o corpo ainda estava maior que a cama. Teseu então ajusta Procrusto à própria cama cortando-lhe a cabeça.

Tenho discutido bastante sobre a idéia de normalidade. Para mim, o mito de Procrusto é perfeito para ilustrar o quanto as diferenças funcionais tem sido submetidas às camas de Procrusto. Entre nós há esforços para eliminar as diferenças, normalizando a todos, mas as camas em que somos jogados, ao contrário das de Procrusto, são confortáveis e o apelo normalizador é quase irrecusável. Se um de nós afirma estar bem ajustado e feliz com sua diferença, e recusa deitar-se nas modernas camas de Procrusto, esta fala soa como loucura, desdém, arrogância...

Nossa diferença funcional muitas vezes incomoda mais aos outros do que a nós mesmos. Atribuem a nós uma vida muito mais difícil e dura do que ela é de fato. Pensam que sofremos mais do que sofremos de fato. Pensam que somos tristes, doentes, frustrados, revoltados e, consequentemente, infelizes por sermos “anormais”. Daí a expectativa de normalizar a todos. Daí o sonho de eliminar as diferenças.

Eliminar as diferenças... corrigir as disfunções... normalizar... Não seria mais ÉTICO, mais humano, mais lógico, mais coerente e até mais barato diversificar os caminhos, os meios, as oportunidades? Nao seria mais inteligente eliminar os obstáculos, prover acesso (no sentido mais amplo do termo!) e melhorar o entorno das diferenças, ao invés de lançar a diversidade funcional nas camas de Procrusto?

O que transforma uma diferença funcional em “deficiência”, disfunção e limitação é o ambiente, o entorno, a sociedade em que vivemos e o mundo que nos cerca. É exatamente por isso que termos como “pessoa com deficiência”, “deficiente”, “pessoa com necessidades especiais” caíram tão bem no “gosto” popular! Quando alguém usa esses termos (eu não uso mais!!!), sem perceber está isentando o ambiente, o meio físico e social de qualquer responsabilidade; o problema é da pessoa, daí o rótulo de INEFICIENTE, ou seja, deficiente. Essa visão distorcida, absurda, patrocinam as atuais camas de Procrusto.

Sempre me perguntam se sou contra ou a favor das pesquisas com células tronco, se quero “sair da cadeira” e voltar a ser como antes, se creio em promessas, orações e outros procedimentos que pretendem restaurar a normalidade perdida... Dizer não às pesquisas é uma burrice inaceitável. Da mesma forma, é uma estupidez acreditar que tudo o que a ciência oferece é excelente e irrecusável. Se valorizássemos – e usássemos! – um pouco mais nosso senso crítico e nossa autonomia, a ciência nao seria tão poderosa...

Concordo com a resposta de Teseu: cada um tem um direito de ser como é. E vou um pouco além: cada um tem também o direito de tentar ser o que quiser. Isso equivale a voltar a ser como era, ou mesmo tentar ser como nunca foi. Não questiono o desejo, o investimento, a esperança nem a fé... Mas lamento quando vejo tantas pessoas estagnadas à espera de um milagre. Que venha o milagre! Mas, parafraseando Rubem Alves, a espera pode ser longa. Enquanto se espera, é preciso viver!

Nos próximos textos, mais mitologia Grega e Diversidade Funcional. Aguardem!

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Palavras-chave: mitologia e deficiência; mitologia grega; Procrusto; normalidade; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; Ray Pereira.

sábado, 14 de março de 2009

O mito de Procrusto: normalidade a qualquer preço

Procrusto parece ter inspirado o desenvolvimento do padrão de normalidade que regula os conceitos e as práticas presentes no cotidiano da diversidade funcional. Muito citado, o mito é perfeito para ilustrar qualquer situação reducionista ou arbitrária que priorize uma medida convencional em detrimento das diferenças.

Os textos míticos são contraditórios acerca da vida, dos nomes e motivações de Procrusto. Apesar das contradições, a descrição dos seus atos é unânime: ele era um “normalizador” bem intencionado, porém, muito, muito cruel. Sua idéia era acabar com a desigualdade entre os homens, mesmo que para isto tivesse que mutilar a todos.

Em Coridalos, onde morava nosso personagem, havia muitos gigantes. Ele próprio era um gigante. Por lá havia também homens pequenos. Com o tempo, os grandões começaram a subjugar os menores. E Procrusto, metido a benfeitor da humanidade, procurou eliminar a desigualdade entre os moradores de Coridalos. Depois de muito refletir, seu primeiro ato foi mudar o próprio nome: Polípemo tornou-se Procrusto, o “esticador”. O segundo ato foi construir duas camas, uma para os grandes, outra para os pequenos. As duas camas são as famosas “camas de Procrusto”.

Na cama dos pequenos ele colocava os grandes. Na cama dos grandes, colocava os pequenos. As camas foram construídas para igualar os homens. Como os grandões sobravam nas camas pequenas, ele os cortava, amputava (com um machado!) a parte das pernas que sobrava na cama feita para os pequenos. Quando os pequenos deitavam na cama maior, é óbvio, sobrava cama. Procrusto, então, esticava com roldanas o corpo dos pequenos. Para o “esticador”, não haveria mais motivos para uns subjugarem outros. Depois de deitar nas camas de Procrusto, todos tinham o mesmo tamanho. E todos estavam igualmente mutilados.

Atualmente vivemos todos submetidos às camas de Procrusto. É exigido de todas as pessoas que sejam jovens, bem sucedidas, magras, alegres, dinâmicas... é exigido ainda que gostem das mesmas coisas, que vistam as mesmas roupas, que pensem da mesma forma (ou, não pensem!)... A lista é infinita! E as camas de Procrusto são os cremes, as dietas, as cirurgias plásticas, o sucesso, as academias, os prozacs... a lista também é infinita, mas, passemos à “normalidade”, a bendita normalidade que determina a forma “correta” de funcionamento do corpo. Hoje em dia, há todo um aparato técnico a serviço de Procrusto. Olhe à sua volta e verá! Talvez dentro da sua própria casa. Na clínica que você freqüenta. Em sua escola, no seu trabalho, nas ruas e equipamentos urbanos...

Se Procrusto saltasse da mitologia grega para a nossa realidade, ele diria que temos todos que funcionar da mesma maneira. Diria ainda que o preconceito e a discriminação social SÃO causados pela diversidade funcional. Em seguida, e com requinte de crueldade, faria todos funcionarem da mesma forma: Todos tem que caber nas portas estreitas; todos tem que andar com as pernas, e de pé; todos tem que enxergar com os olhos; todos tem que ouvir com os ouvidos; todos tem que aprender com um único projeto pedagógico e assim por diante. No mundo de Procrusto, a igualdade é o que há de melhor para a humanidade, por isso ela é compulsória.

No próximo texto saberemos mais sobre Procrusto, o normalizador...

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Palavras-chave: mitologia e deficiência; mitologia grega; Procrusto; normaliade; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; Ray Pereira.


sexta-feira, 6 de março de 2009

Mitologia e diversidade funcional: O artesão do Olimpo (final)


Na antiga Grécia, a beleza física e a aptidão para a guerra eram características extremamente valorizadas no homem. Os artesãos, muitos deles com diferença funcional, embora dotados de talento artístico e criatividade, eram discriminados por serem considerados inaptos para a guerra. Esse traço cultural lançava no limbo social e nos precipícios espartanos qualquer criança que nascesse com alguma característica física “inadequada” para os costumes vigentes. No Olimpo não era diferente, mesmo porque a poesia e os mitos são inspirados na condição humana.
V
Vejo em Hefestos um elemento transformador. Um agente capaz de influenciar nossa mentalidade sobre as diferenças. Tanto a nossa própria diferença, como a dos demais. Nas lendas gregas, a condição física de Hefestos, em princípio, era motivo de zombaria. Ele próprio é retratado como um homem solitário e rude antes retornar ao Olimpo. Posteriormente, foi considerado um deus por excelência, reverenciado tanto no Olimpo como pelos artesãos humanos que tinham nele uma espécie de patrono.

Hefestos é para mim uma fonte de inspiração quando penso em diversidade funcional. Sua condição física, em si, poderia ser melhorada por Zeus se tal milagre fosse exigido como parte da negociação feita para a libertação de Hera. Mas, não eram as pernas tortas e feias que o incomodavam. Hefestos quis apenas voltar ao lugar que era seu por direito... E, como não era bobo, incluiu no acordo a belíssima Afrodite para dar fim a sua solidão.

Creio que alguns Hefestos do nosso tempo, se pudessem escolher entre remover a “deficiência”, ou remover a rejeição, escolheriam remover a rejeição. Creio ainda que a busca insensata por procedimentos milagrosos capazes de eliminar uma diferença funcional, é, na verdade, um desejo inconsciente de agradar Hera, ou ser aceito pela poderosa mãe arquetípica que habita o coração de cada Hefestos.

As habilidades de Hefestos também inspiram. Não sei se a tecnologia assistiva já tem um patrono. Se não tem, deveríamos dar a Hefestos tal honraria. Aqui, no mundo real, a primeira cadeira de rodas que se tem notícia é de meados do século XVII. Seu construtor e usuário foi Stephan Farfler, um paraplégico alemão. Antes do alemão, mas no mundo mitológico, quem também construiu uma cadeira de rodas foi Hefestos! Além da cadeira, ele construiu uma equipe de assistentes que invejaria qualquer um de nós. Na descrição de Homero, as servas do nosso patrono eram de ouro, viviam como mulheres, eram dotadas de voz, inteligência e habilidades. Essas criaturas fabulosas se moviam sobre um tripé com rodas... Eram verdadeiros ciborgues!

A data estimada para os textos de Homero é o século VIII a.C. Dois ou três séculos depois, com os textos do poeta já difundidos, temos no contexto grego pessoas com diferença funcional trabalhando em atividades manuais, fabricando artesanalmente artefatos de metal, armas, jóias e outros ornamentos, inclusive móveis, panelas, vasos... Há uma estreita relação entre as habilidades de Hefestos e a atividade desses artesãos da Grécia Antiga.

Talvez um mitólogo não concordasse com minha percepção de Hefestos. Minha fala e textos são iluminados pela vivência com a diversidade funcional. Daí minha facilidade em vislumbrar no artesão grego um dos nossos muitos pares perdidos na literatura e nos mitos (falarei de outros personagens nos próximos posts).

De Hefestos, vale a pena registrar o seguinte: sua diferença funcional não congelou sua história. Muito pelo contrário. Ele encarou suas limitações com criatividade e emprestou sua arte, seus talentos e suas habilidades para todo o Olimpo inteiro. Apesar da rejeição na infância, algum afeto Tétis conseguiu plantar naquele coração rude: por amor à humanidade, ele cedeu de suas forjas o fogo – que é transcendência, inteligência, intuição – que humanizou os homens.

O mito mais conhecido sobre o fogo que nos transformou é o de Prometeu, que roubou o fogo (de Hefestos) para dá-lo aos homens. Cedido por Hefestos, ou roubado por Prometeu, o fogo era domínio de Hefestos. Então, simbolicamente, estamos todos vinculados ao mito de Hefestos, o artesão grego que, como eu e você, faz parte da diversidade funcional.

Teremos mais Mitologia Grega nos próximos textos. Aguardem!

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terça-feira, 3 de março de 2009

Mitologia e diversidade funcional: O artesão do Olimpo

Mitologia é um tema fabuloso para se pensar a condição humana, a vida e o mundo. Há várias mitologias, mas a mais conhecida é a grega. Se você não está familiarizado com textos e imagens mitológicas, aqui vai uma dica: esqueça os fatos! O que importa em mitologia é o sentido e a mensagem. Há quem discuta e até afirme a veracidade de alguns temas mitológicos, especialmente aqueles que estão na base de certas religiões. Mas, reafirmo que a mensagem e o sentido são o que há de mais precioso nos mitos.

Nesta nova série de textos, tomarei alguns personagens da mitologia grega para tratar do tema que movimenta esse blog: a diversidade funcional. Quero iniciar com Hefestos (ou Hefesto, ou ainda Hephaistus), uma das divindades gregas do Olimpo. Para os romanos, Hefestos é Vulcano, Tanto para os gregos, quanto para os romanos, Hefestos é o deus do fogo, das erupções vulcânicas, da metalurgia, o ferreiro divino e outras designações semelhantes. O que se destaca em Hefestos é sua habilidade artística refinada. Era um artesão a quem os deuses gregos recorriam quando precisavam de ferramentas, artefatos, armas ou qualquer invento espetacular.

Na lista dos trabalhos de Hefestos, encontramos as armas que Aquiles usou na guerra de Tróia, o escudo e os raios de Zeus. Há outros trabalhos magníficos que ainda mencionarei. Mas, antes, preciso esclarecer um detalhe: Hefestos, o deus grego do fogo, o artesão do Olimpo tinha uma história parecida com a minha e a sua. Hefestos tinha uma diferença funcional. A literatura usa aqueles termos horríveis que evitamos aqui: ele era “coxo”, ele era “manco”.

Há mais Hefestos à nossa volta do que você imagina. Recomendo aos não-cadeirantes que leiam sentados para não caírem surpresos com alguns detalhes muito comuns a todos nós: Vamos lá:

Hefestos é filho partenogênico de Hera, esposa de Zeus. Mas, ela o gerou sozinha. Seu objetivo era vingar-se de Zeus, seu incorrigível marido infiel. Hera queria humilhar Zeus, exibindo um filho nascido sem a sua participação. Hefestos foi gerado para ser objeto de vingança. Porém, o tiro de Hera saiu pela culatra. Seu filho nasceu deformado, feio e com “defeito” nas pernas. Ela não teve nenhum orgulho do seu filho, já que ele não serviria para a sua vingança. Hera, então, rejeitou Hefestos. E não apenas o rejeitou, mas lançou-o do alto do Olimpo, agravando ainda mais sua condição física.

Há algumas variações na literatura acerca da origem da diferença funcional de Hefestos. Não vou perder tempo com os pormenores. Para os interessados, há várias referências a Hefestos na Ilíada e Odisséia, obras clássicas de Homero, o grande poeta grego. Homero, aliás, também tinha uma diferença funcional. Ele era cego.

Voltando a Hefestos... Hera, a mãe, gerou Hefestos para humilhar Zeus. Hera rejeitou o filho e, literalmente, do alto do Olimpo atirou-o ao mar. Mais tarde, a tragédia familiar continua, pois Hefestos vinga-se de sua mãe e, com isso, consegue voltar ao Olimpo. Perceba, leitor(a), os sentimentos envolvidos nessa trama... e no centro desses sentimentos, uma diferença funcional.

A vingança: Um dia, chega ao Olimpo um presente misterioso. Um belo e magnífico trono de ouro que encantou a todos. A obra de arte não tinha destinatário, nem assinatura. Hera, a esposa do todo-poderoso do Olimpo, não resistiu e sentou-se no trono. Hefestos construiu um trono capaz de prender sua mãe. Hera ficou mesmo presa ao trono e não houve quem pudesse salvá-la. A solução só poderia vir das mãos do próprio artesão que, em princípio, negou qualquer ajuda. Ares (Marte) usou a força bruta para convencê-lo, mas fracassou. Dionísio (Baco), deus do vinho, amigo “de copo” de Hefestos, embebedou-o e conduziu-o ao Olimpo.

Ainda assim, Hefestos não se deu por vencido. Negociou sua ajuda exigindo duas coisas: seu retorno ao Olimpo e uma esposa; ninguém menos que Afrodite, a deusa do amor e da beleza. Zeus permitiu o casamento, mas sua intenção era vingar-se de Afrodite que recusara amá-lo. Afrodite não podia desobedecer ao deus dos deuses, mas nunca foi fiel a Hefestos. Esse casamento acaba e, mais tarde, Hefestos casa-se com Cárites.

O mito de Hefestos me parece muito familiar. Conheço algumas histórias de rejeição e desamor cujo elemento central é a diferença funcional da criança. Hera queria exibir seu filho com orgulho; mas uma criança deformada não alegra a mãe. Felizmente, há exceções. Poucas. Mas há, sim, mães que fingem amar seus Hefestos. E há mães que jogam fora seus filhos. E há pais que partem, somem, desaparecem do mapa com a chegada de um Hefestos. E há Hefestos que são jogados fora, mesmo sendo acolhidos, alimentados e educados no sagrado seio do lar. Esta última forma de rejeição é a mais vil e a que me parece mais comum.

Nenhuma mãe planeja ter um filho diferente. Muitas vezes, a criança só nasce para os pais naquele exato momento quando, após o parto, o médico informa que “nasceu perfeito”... Hefestos, ao contrário, não nasceu com essa perfeição desejada pelas mães. Ele foi criado por Tétis, uma ninfa que o resgatou e cuidou dele com carinho. Tétis mostra-nos que não é a ação do útero que faz uma mãe. Adotar uma criança é um gesto nobre. Mas, adotar um Hefestos requer, além da nobreza, uma rara e elevada generosidade afetiva, materna, humana...

Há muito o que refletir sobre Hefestos. Sobre suas habilidades e inovações trabalhando na forja. No próximo post ainda teremos a companhia de Hefestos, o deus do fogo. Aguardem!

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quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Diferença funcional e tecnologia (final)


Os conselhos de Dédalo

Robótica e genética são duas engenharias igualmente promissoras para a diversidade funcional. Mas, ainda é muito cedo para apostas muito altas em termos de resultados específicos e efetivos. O que salta aos olhos nesse momento é exatamente a tecnologização do conceito de normalidade e a corrida para essas alternativas milagrosas.

Normalidade em tempos de tecnologia de ponta é um sonho de consumo para muitos indivíduos com diferença funcional. Tenho dito que as formas de “deficiência” que conhecemos hoje estão em franco processo de extinção. A diferença funcional poder ser “superada” (leia-se normalizada), eliminada ou compensada, mas a diferença se manterá. A diferença é da ordem da contingência humana e teremos que lidar com ela sempre... ou, pelo menos, enquanto o planeta não for consumido pela humanidade. Como a diferença é o meu foco, penso mais nas implicações éticas, e menos, bem menos nos milagres da ciência como “bem de consumo”.

A ciência, a grande senhora/deusa da contemporaneidade, oferece-nos suas descobertas e seus artefatos. O uso, os efeitos e as implicações são outros quinhentos. Vamos ilustrar isso com um mito grego:

Segundo a mitologia grega, Ícaro era filho de Dédalo, um habilidoso arquiteto de Atenas. Sua obra mais famosa é o labirinto, construído para aprisionar o Minotauro. Teseu, o herói grego que matou o Minotauro, ganhou fama, mas a criatividade de Dédalo está por trás do seu feito heróico. Ariadne, filha do Rei Minos, foi quem ajudou Teseu, dando-lhe o fio de lã que marcou o caminho de saída do labirinto. O que poucos sabem, é que foi Dédalo o verdadeiro mentor do plano de Ariadne.

A vitória de Teseu rendeu-lhe fama e o amor da bela Ariadne. Dédalo, por sua vez, foi lançado com seu filho no labirinto. Esta foi a punição imposta pelo rei Minos. Aqui começa a história de Ícaro e o seu romântico e insensato voo para a morte.

Minos dominava a terra e o mar. A fuga de Dédalo e Ícaro só seria possível pelo ar. Dessa forma, Dédalo projetou um artefato para salvá-los: juntou penas de gaivotas, fixou-as com cera e construiu asas para si e para o filho. Ícaro foi instruído para que voasse em altura média; nem tão próximo do sol, nem tão perto da água, pois o sol derreteria a cera e a água molharia as penas.

Dédalo levantou vôo e Ícaro o seguiu. Eles se sentiram como deuses, dominando o ar. Ícaro entusiasmou-se com a bela imagem do sol. Sentindo-se livre e poderoso, o rapaz voou em direção ao sol, que derreteu a cera. As orientações de Dédalo não foram seguidas e Ícaro caiu no mar e morreu. Dédalo, num vôo cauteloso, chegou seguro ao seu destino.

Para mim, a cautela de Dédalo e o deslumbramento de Ícaro são mais importantes que as asas. O mito nos ensina a lidar com cautela com as asas da tecnologia: elas podem libertar os que se sentem presos nos labirintos da diferença. Mas, o deslumbramento pode provocar novos acidentes durante o percurso rumo ao que nos parece ser uma experiência de poder e liberdade.

A advertência de Dédalo vale também para as expectativas em torno das pesquisas em genética e robótica e sua aplicação na correção das diferenças funcionais. A título de exemplo, o conhecimento que a física acumulou sobre o átomo produziu um tremendo avanço tecnológico. A medicina nuclear é uma aplicação desse conhecimento... Mas, a bomba que devastou Hiroshima também foi produzida com mesmo conhecimento. A mesma tecnologia que cura e salva muitas vidas, também destrói e mata em grande escala.

Em se tratando de diversidade funcional, não vejo dificuldade em aplicar o mesmo princípio. Nossos corpos poderão adquirir novos desenhos genéticos, ou poderão ser acoplados em plataformas robóticas, tudo para eliminar uma determinada forma de funcionamento considerada inadequada. Se hoje lidamos com lesões medulares e síndromes genéticas, amanhã talvez tenhamos que lidar com “lesões gênicas” metafóricas. O planejamento de filhos “perfeitos” via aconselhamento e tratamento genéticos dará destaque negativo aos humanos “não-perfeitos”, nascidos nos padrões naturais... e o natural talvez seja, um dia, obsoleto, antiquado, vil e indesejável. E novamente veremos a humanidade dividida entre “normais” e “anormais” tecnologicamente construídos.

As promessas e conquistas tecnológicas poderão facilmente se transformar em instrumentos regulatórios e discriminadores, a exemplo do que aconteceu a partir do surgimento da Ciência Moderna. Em tempos passados a visão mecanicista do mundo penetrou fundo na idéia, no conceito e no padrão de corpo. Hoje, se olharmos com atenção, enxergaremos o desenvolvimento de uma concepção híbrida de organismo: o ser gênico-robótico.

Para aguçar nosso senso crítico, vale a pena assistir a 3 filmes:

Gattaca – Experiência Genética (1997), de Andrew Niccol;
Eu Robô (2004), de Alex Proyas;
AI: Inteligência artificial (2001), de Steven Spielberg.

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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Diferença funcional e tecnologia (Parte 3)

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O valor da normalidade

Normalidade inicialmente deveria ser apenas um conceito. Mas, o conceito transformou-se em um valor. Um instrumento de poder e status. Se considerarmos apenas os textos médicos e científicos que tratam do assunto, certamente parecerá absurdo pensar na normalidade como um instrumento de poder e status. Aqui fora, no cotidiano, as pessoas são avaliadas e julgadas de acordo com o “bom” ou “mal” funcionamento do corpo. Não há, portanto, espaço para a diversidade, para o funcionamento diferente. Somos, em regra, medidos pelo padrão de normalidade.

Quando perguntam se há tratamento ou cura para a nossa diferença funcional, de fato estão dizendo que há uma condição mais desejável (melhor) que a nossa. E como a diferença incomoda! Incomoda tanto, que estranhos chegam e falam conosco sobre o assunto, usando como mote a matéria que viram na televisão sobre um tratamento... não sabem explicar direito, mas chegam e dizem que a cura está a caminho.

Hoje em dia, com ampla divulgação (algumas vezes, divulgação sensacionalista) de promissoras pesquisas, as pessoas estão alvoroçadas. Há vinte anos, quando minha diferença funcional era recente, não havia alvoroço. Havia um olhar desolado diante de uma condição indesejável, irreversível e inaceitável: “Coitado. Vai ficar preso a está cadeira de rodas prá sempre”.

O forte apelo pela eliminação da diferença não surgiu com o avanço da ciência. Aliás, tanto o apelo como a prática remontam à Antiguidade. As práticas mais grotescas implicavam a eliminação sumária das pessoas diferentes. Eram práticas adotadas sem qualquer objeção familiar, social, religiosa, jurídica. Pasmem, mas todas estas instâncias participavam do processo. Sim. Participavam. Inclusive a família e a Igreja. Eliminava-se a pessoa com sua diferença a um só golpe. Nota-se, assim, que o costume de ver a “deficiência” no lugar da pessoa é algo bem antigo.

Felizmente as coisas mudaram. Mudaram um pouco. Com o avanço da ciência, a medicina desenvolveu formas menos truculentas de eliminar a diferença. O padrão de normalidade serviu para isto: “Não há um espírito mau, ou um pecado na vida/no corpo dessa pessoa. Ela é apenas anormal, ineficiente, incapaz. Mas nós podemos consertá-la. Podemos normalizar os que não se encaixam no nosso padrão de normalidade”.

A medicina tem a chancela da ciência. Este carimbo de qualidade é valiosíssimo. Tão valioso que diariamente vemos na televisão propagandas de produtos “testados cientificamente”. Se é testado, e se e aprovado pela ciência, é bom! Não há o que questionar! É assim que nos comportamos!

Com o padrão legitimado e aceito, a normalidade passou a ser exigida e desejada. Exigida por aqueles que se sentem incomodados com a diferença do outro. Desejada por aqueles que não aceitam a própria diferença. A priori, o desejo de “ser normal” não é um desejo pessoal. Ao contrário, é um desejo social. O desejo de “ser normal” só será pessoal depois de ter passado pelo senso crítico de cada indivíduo. Aí então saberemos responder se aquilo que desejamos é realmente bom, necessário, ou importante para nós...

A ciência é imprescindível para a humanidade. Eu diria até que a ciência é maravilhosa! Mas, a confiança cega na ciência me preocupa. Me preocupa pensar que haverá um forte apelo – senão uma coerção! – social, familiar, midiático em torno das novas possibilidades que a ciência trará para a diversidade funcional.

Hoje temos liberdade para pesquisar. E o cenário é muito promissor para a ciência. Creio que as formas de diferença funcional que conhecemos hoje, desaparecerão no futuro. Em breve, nossas diferenças funcionais serão facilmente compensadas e até eliminadas com artefatos que a ciência nos dará. Tomara que o nosso senso crítico avance com a tecnologia, e não a reboque dela.

As diferenças funcionais poderão ser eliminadas. Mas, ainda assim, seremos diferentes.

Podemos ser “normalizados” e fazer tudo como a maioria faz Mas, ainda assim, seremos diferentes.

A tecnologia fará de nós pessoas mais funcionais. Mas, ainda assim, seremos diferentes.

Ser diferente incomoda. O incômodo causado pela diferença produz preconceito, discriminação, rejeição... Rejeita-se a diferença do outro. Rejeita-se inclusive a própria diferença.

Se a diferença permanecerá, haverá fim para o preconceito?

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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Diferença funcional e tecnologia (Parte 2)

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A invenção do manual
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Até a Idade Média, questões como doença e diferença funcional eram explicadas com base em argumentos religiosos. Acreditava-se que forças maléficas (e, algumas vezes, benéficas) poderiam causar danos ao corpo, especialmente doenças e deformações.

Com o avanço da medicina e as teorias de Isaac Newton (1643-1727), a concepção de “deficiência” passou a ter contornos muito diferentes daqueles conhecidos até então. A visão mecanicista do universo, herança direta de Newton, fez emergir um resultado desastroso para a questão da diferença, pois o corpo também passou a ser visto e tratado como uma máquina.

O novo modelo científico de corpo transformou as doenças, as diferenças e as excepcionalidades em disfunção (algo ali não estaria funcionando, daí a “disfunção”). Assim, as várias condições consideradas “adversas” ao funcionamento NORMAL do corpo passaram a ser tratadas como uma disfunção em algum componente dessa máquina chamada corpo. Daí em diante, as diferenças funcionais se transformaram em disfuncionalidade, desvio e anormalidade.

A influência da ciência naquele momento era tão expressiva que mesmo a autoridade da Igreja passou a ser questionada e superada. A título de exemplo, o Geocentrismo (teoria que considerava a terra como o centro fixo do sistema solar e do universo criado) era o modelo de universo referendado pela Igreja. O Geocentrismo foi superado e a Ciência Moderna colocou no seu lugar o Heliocentrismo, depois de comprovar que a terra orbitava em torno do sol. Este sim, fixo.

Antes, a Igreja acreditava que as “deficiências” eram produzidas por alguma razão, força ou influência espiritual. Veio a Ciência Moderna e disse: “Não há força espiritual alguma. É apenas um corpo que não funciona como manda o manual de NORMALIDADE da Ciência Moderna”.

Para pensar na companhia do seu travesseiro:

Você que possui uma diferença funcional, qualquer que seja, acha mesmo que você é uma máquina com defeito?

Haverá alguma relação entre o padrão de normalidade e as pesquisas com células-tronco, em cibernética e outros ramos tecnológicos?

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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Diferença funcional e tecnologia (parte 1)


É mesmo normal ser diferente???

Uma das expectativas mais comuns entre as pessoas com diferença funcional é a eliminação da limitação produzida pela diferença. Para muitos de nós, esta expectativa existe pelo menos em algum momento da vida; para outros, ela torna-se a razão e o sentido da vida. Já convivi com pessoas que investiam todo o seu tempo, energia e recursos na expectativa de reverter/eliminar uma “deficiência”.

Já fui um crítico desta expectativa. Hoje, mais maduro e com uma visão crítica mais aguçada, não vejo razão para criticar uma atitude isolada, uma expectativa isolada. Embora respeite as escolhas de qualquer pessoa (nossas escolhas são sempre legítimas, por melhor ou pior que sejam!), tento refletir sobre o que estaria motivando uma escolha desse tipo.

Tento entender o motivo, a razão, o “por quê?” de se querer tanto e com tanta determinação reverter/eliminar uma “deficiência”. Se você é uma dessas pessoas, já antecipo que torço, torço muito para que você realize seu desejo. Creio, creio firmemente que, num futuro não muito distante, muitas “deficiências” serão eliminadas pela tecnologia. Mas, minha discussão aqui precisa ir além dos casos particulares.

Já me perguntaram assim, na lata: Você não gostaria de voltar a ser normal? Muitas perguntas semelhantes já foram feitas para mim e para a maioria das pessoas que apresentam alguma diferença funcional. E as abordagens são as mais diversas: umas mais, outras menos incisivas, algumas invasivas e indelicadas, outras gentis e até carinhosas. O que há de comum nas perguntas é a expectativa, o desejo e o desconforto diante de uma situação considerada anormal.

É isso. Uma diferença funcional é considerada uma condição “não-natural” – um eufemismo usado para substituir “anormal”, já que nem todos conseguem dizer que uma paraplegia ou uma cegueira são condições anormais.

Normalidade e “deficiência” são duas invenções da Ciência Moderna e da medicina. Antes de resumir esta história, vale lembrar que “deficiência” neste blog é sempre entre aspas (sugiro a leitura dos textos postados em setembro de 2008). É isto mesmo! Normalidade e “deficiência” são conceitos inventados a partir de uma mudança radical no campo das ciências, em geral, e da medicina, em particular.

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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A natureza humana a olhos vistos: Exploração e diversidade funcional

Num dos e-mails que recebi falando sobre o último post, havia uma curiosa provocação. Daniel, leitor assíduo desse blog, reportou ao parágrafo onde falei da “exploração imoral e desumana produzida onde quer que a diferença se manifeste” e destacou a frase entre parênteses: “pasmem, mas a exploração é assunto para um post inteiro!”. Ele termina o e-mail sugerindo que eu voltasse ao tema “exploração”

As formas de exploração da diferença funcional e as áreas da vida onde elas acontecem não são poucas. Os agentes da exploração que assola a diversidade funcional, é claro, pode ser qualquer um, inclusive “um dos nossos”: há a exploração feita pelos supostamente não-diferentes e a exploração feita entre e pelos próprios indivíduos que apresentam uma determinada diferença funcional (esta última foi amplamente mostrada no filme Ensaio sobre a cegueira). Não há como escolher uma delas e dizer “esta é a pior”, já que ambas desrespeitam, degradam e humilham as pessoas tomadas como objeto da exploração.

Se considerarmos o ponto de vista de quem é explorado, creio que não faz diferença pensar na forma de exploração, já que todas são igualmente humilhantes. Então, sem hierarquizar, vou retomar aqui uma ou duas formas de exploração dentre as indicadas no post passado (exploração sexual, exploração da caridade alheia, exploração da ignorância, exploração da vulnerabilidade, exploração financeira) e, se for necessário, retomo algum ponto ou idéia posteriormente.

O abuso sexual é um tipo de violência muito comum. Curiosamente, e para acentuar ainda mais o asco causado por esta forma de exploração, há casos, e não são poucos, onde o abuso sexual acontece no seio da própria família. Meninas e meninos com diferença funcional, especialmente a diferença funcional intelectual, são vulneráveis, desprotegidos e, portanto, ainda mais sujeitos a esta forma de exploração. Destaquei meninas e meninos com diferença funcional intelectual, mas, de fato, mesmo os adultos, em geral, e mulheres, em particular, estão sujeitos a esta forma de exploração.

O abuso sexual é uma forma infame e criminosa de se ter acesso ao corpo e à intimidade de uma pessoa sem o consentimento dela. Os instrumentos, em regra, são o poder e a força, a truculência e a dominação, daí a covarde preferência dos agressores e agressoras por pessoas que não podem se defender, seja no aspecto físico, seja no psicológico. Tais características, com raras exceções, estão presentes na diferença funcional intelectual.

Na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, proposta pela ONU e já ratificada por dezenas de países (no Brasil a ratificação ainda tramita no Congresso), há um capítulo que trata da prevenção contra a exploração, a violência e o abuso contra as “pessoas com deficiência” (a ONU ainda não acolheu nossa proposta de substituir os termos propostos neste blog...rss). O texto da Convenção reconhece que a exploração, a violência e o abuso associados à diferença funcional ocorrem tanto dentro como fora do lar, e incluem, obviamente, os aspectos de gênero.

A exploração da caridade alheia é outro ponto lamentável e não menos imoral. Me perdoem a franqueza e a objetividade, especialmente porque há pessoas (não creio que seja a maioria) que não sobreviveriam sem pedir esmolas. Mas, efetivamente, há pessoas com diferença funcional que fazem dessa prática o seu modo de ganhar a vida. Se há uma deformação ou amputação nos braços, lá está o indivíduo, sem camisa, mostrando sua deformação... se há uma amputação, uma lesão, ou qualquer outro “dano físico”, tal característica é exposta para mobilizar a caridade alheia.

Esta prática também é uma herança religiosa antiga e maldita dos tempos quando se confinava pessoas com diferença funcional para serem mantidas por ordens religiosas... eram consideradas espiritualmente devedoras e fisicamente incapazes; e para o bem da alma dos caridosos – e somente por isso! – eram acolhidas e protegidas. Tão protegidas que nem aprenderam a cuidar de si mesmas. Nenhum investimento em educação, nenhuma formação profissional, nenhum estímulo ou atitude que pudesse desenvolver a auto-estima e o amor próprio da pessoa. Com isso elas próprias passaram a se valorizar por baixo, ao preço de míseras moedinhas. Com o tempo, esta prática legitimou-se socialmente e hoje, com alguma esperteza, uma diferença funcional pode ser transformada em “fonte de renda”, em instrumento de exploração da fé alheia... Vale dizer que é que igualmente imoral tirar proveito de qualquer situação valendo-se de uma condição física diferente!

Esta cultura da pobreza associada à diferença funcional impregnou a mentalidade de todos, daí o quadro atual. Na prática, hoje em dia até o governo dá esmolas para a diversidade funcional. Para o senso comum, talvez pareça até mais descabido o que acabo de escrever do que um indivíduo pedindo esmolas e tendo como justificativa o fato de não poder andar, enxergar...

Falando em herança religiosa, voltemos nossa atenção para alguns grupos religiosos que se camuflam entre os evangélicos e pentecostais como se pertencessem à mesma estirpe histórica, teológica e doutrinária. São seitas, igrejas e grupos criados nos últimos 30-40 anos e que vivem da exploração da fé e dos recursos financeiros dos seus fieis. Nós, especialmente cadeirantes, cegos, surdos, somos literalmente caçados com promessas de cura. Eu mesmo já fui abordado várias vezes com panfletos, convites e outras formas de “assédio evangelístico”. Confesso que me sinto insultado, mesmo quando não dizem que o demônio está dentro de mim, por isso estou nessa cadeira de rodas.

Aprendi a respeitar qualquer manifestação religiosa. Mas meu respeito pelo sentimento religioso e pela fé que uma pessoa pode ter no coração é infinitamente maior que o respeito que consigo ter por instituições religiosas declaradamente espúrias e não-idôneas. Há relatos de colegas e amigos que (por razões que não cabem discutir ou questionar) se submeteram a estranhos rituais com vistas a uma possível cura. Como a cura não acontece, recebem pela cara uma humilhante frase-consolo do tipo “você não teve fé”.

O que estes grupos religiosos querem é espetáculo. Um espetáculo que possa abarrotar ainda mais seus cofres e melhorar sua duvidosa reputação. Querem tanto tal espetáculo que há situações comprovadas de curas fraudulentas noticiadas pela mídia. Triste forma de exploração da diversidade funcional.
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sábado, 31 de janeiro de 2009

A natureza humana a olhos vistos

Quando decidi assistir Ensaio sobre a cegueira, pensava encontrar no filme muita inspiração para escrever sobre a cegueira como diferença funcional. Mas, em meio a uma inesperada epidemia de cegueira, o filme trata, de fato, da natureza humana. E que visão da natureza humana!

No que tange à cegueira como diferença funcional, o filme mostra exatamente o que a história da diversidade funcional nos revela. Convenhamos, confinar as pessoas acometidas pela epidemia foi uma medida nada original. Por volta do século IV, medida semelhante foi tomada por um religioso chamado Basílio de Cesaréia. Naqueles tempos, as diferenças funcionais eram tratadas como conseqüência de algum pecado e a eliminação era sumária. Naquele contexto, foi criado por São Basílio o primeiro asilo para cegos. No século V, instalações semelhantes foram criadas em vários lugares e o objetivo era muito semelhante ao que vemos no filme: não sabemos, não podemos e não queremos lidar com “esta” situação. O mesmo princípio vale para a ficção de Saramago adaptada ao filme de Meirelles, e vale também (ainda que de forma velada) para o nosso cotidiano.

No filme, diante de uma diferença funcional (cegueira) conhecida, mas de grandeza epidêmica inusitada, a sociedade reage criando um confinamento, um grande depósito de gente para os “novos cegos”. Uma vez confinado, o grupo precisou se organizar. Nesse processo, vem à tona o que há de pior na natureza humana... A crueldade do confinamento imposto pelos não-cegos fica esmaecida diante da crueldade produzida dentro do confinamento, entre pares, entre iguais...

Durante o filme minha mente voou para as muitas cenas que já vivi, e tantas outras que presenciei ou tomei conhecimento. Impossível não lembrar-se de tantas situações reais! E por serem reais e tão próximas, parecem até mais cruéis do que aquelas apresentadas pelas câmeras de Meirelles:

Impossível não lembrar-se de tantas situações em que uma diferença funcional é tratada como condição inferior, de menor ou nenhuma importância.

Impossível não lembrar-se da covardia e da pequenez humanas... são pessoas que desistem dos próprios sonhos e da vida, optando pelo maldito “plano B”; são pais que desistem dos filhos que nasceram ou tornaram-se diferentes... são filhos que desistem dos pais que envelheceram e também tornaram-se diferentes e inconvenientes.

Impossível não lembrar-se da exploração imoral e desumana produzida onde quer que a diferença se manifeste: exploração sexual, exploração da caridade alheia, exploração da ignorância, exploração da vulnerabilidade, exploração financeira (pasmem, mas a exploração é assunto para um post inteiro!).

Impossível não lembrar-se da intolerância e da incompreensão que nós, sociedade, grupos, famílias, manifestamos em relação às diferenças: diferença funcional, diferença religiosa, étnica e, claro, a diferença na orientação sexual.

Felizmente, também é possível lembrar-se da solidariedade sadia e desinteressada de pessoas que se interessam sim pelo bem-estar do próximo, dos distantes, dos estranhos e até dos inimigos. São pessoas capazes de entregar a própria vida (no caso do filme, o próprio corpo!) para o bem-estar comum.

Finalmente, o que me chamou a atenção de forma dramática foram as vísceras da natureza humana vindo à tona num filme que tem como mote uma diferença funcional. E nesse aspecto, o filme retrata de forma irretocável tanto a natureza humana como a história e o cotidiano da diversidade funcional.

Vimos na tela o esforço desnecessário para separar, hierarquizar ou avaliar as pessoas tomando como medida a sua forma de funcionar. Um grupo de iguais (se é que tal fantasia existe) não sobrevive. Se naquele confinamento todos fossem igualmente cegos, todos teriam morrido. È notável a diversidade do primeiro grupo que foi para o confinamento, mesmo tendo como característica comum o fato de todos estarem cegos. Todos estavam cegos, mas eram todos muito diferentes entre si.

Num filme onde a cegueira está no título, no mote e no enredo, destaca-se a importância não da igualdade, mas da diversidade humana. Enfim, vale a pena ver o filme; você aprenderá um pouquinho sobre cegueira, e muito, muito mesmo sobre gente!
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência visual; cegos.