quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Diferença funcional e tecnologia (final)


Os conselhos de Dédalo

Robótica e genética são duas engenharias igualmente promissoras para a diversidade funcional. Mas, ainda é muito cedo para apostas muito altas em termos de resultados específicos e efetivos. O que salta aos olhos nesse momento é exatamente a tecnologização do conceito de normalidade e a corrida para essas alternativas milagrosas.

Normalidade em tempos de tecnologia de ponta é um sonho de consumo para muitos indivíduos com diferença funcional. Tenho dito que as formas de “deficiência” que conhecemos hoje estão em franco processo de extinção. A diferença funcional poder ser “superada” (leia-se normalizada), eliminada ou compensada, mas a diferença se manterá. A diferença é da ordem da contingência humana e teremos que lidar com ela sempre... ou, pelo menos, enquanto o planeta não for consumido pela humanidade. Como a diferença é o meu foco, penso mais nas implicações éticas, e menos, bem menos nos milagres da ciência como “bem de consumo”.

A ciência, a grande senhora/deusa da contemporaneidade, oferece-nos suas descobertas e seus artefatos. O uso, os efeitos e as implicações são outros quinhentos. Vamos ilustrar isso com um mito grego:

Segundo a mitologia grega, Ícaro era filho de Dédalo, um habilidoso arquiteto de Atenas. Sua obra mais famosa é o labirinto, construído para aprisionar o Minotauro. Teseu, o herói grego que matou o Minotauro, ganhou fama, mas a criatividade de Dédalo está por trás do seu feito heróico. Ariadne, filha do Rei Minos, foi quem ajudou Teseu, dando-lhe o fio de lã que marcou o caminho de saída do labirinto. O que poucos sabem, é que foi Dédalo o verdadeiro mentor do plano de Ariadne.

A vitória de Teseu rendeu-lhe fama e o amor da bela Ariadne. Dédalo, por sua vez, foi lançado com seu filho no labirinto. Esta foi a punição imposta pelo rei Minos. Aqui começa a história de Ícaro e o seu romântico e insensato voo para a morte.

Minos dominava a terra e o mar. A fuga de Dédalo e Ícaro só seria possível pelo ar. Dessa forma, Dédalo projetou um artefato para salvá-los: juntou penas de gaivotas, fixou-as com cera e construiu asas para si e para o filho. Ícaro foi instruído para que voasse em altura média; nem tão próximo do sol, nem tão perto da água, pois o sol derreteria a cera e a água molharia as penas.

Dédalo levantou vôo e Ícaro o seguiu. Eles se sentiram como deuses, dominando o ar. Ícaro entusiasmou-se com a bela imagem do sol. Sentindo-se livre e poderoso, o rapaz voou em direção ao sol, que derreteu a cera. As orientações de Dédalo não foram seguidas e Ícaro caiu no mar e morreu. Dédalo, num vôo cauteloso, chegou seguro ao seu destino.

Para mim, a cautela de Dédalo e o deslumbramento de Ícaro são mais importantes que as asas. O mito nos ensina a lidar com cautela com as asas da tecnologia: elas podem libertar os que se sentem presos nos labirintos da diferença. Mas, o deslumbramento pode provocar novos acidentes durante o percurso rumo ao que nos parece ser uma experiência de poder e liberdade.

A advertência de Dédalo vale também para as expectativas em torno das pesquisas em genética e robótica e sua aplicação na correção das diferenças funcionais. A título de exemplo, o conhecimento que a física acumulou sobre o átomo produziu um tremendo avanço tecnológico. A medicina nuclear é uma aplicação desse conhecimento... Mas, a bomba que devastou Hiroshima também foi produzida com mesmo conhecimento. A mesma tecnologia que cura e salva muitas vidas, também destrói e mata em grande escala.

Em se tratando de diversidade funcional, não vejo dificuldade em aplicar o mesmo princípio. Nossos corpos poderão adquirir novos desenhos genéticos, ou poderão ser acoplados em plataformas robóticas, tudo para eliminar uma determinada forma de funcionamento considerada inadequada. Se hoje lidamos com lesões medulares e síndromes genéticas, amanhã talvez tenhamos que lidar com “lesões gênicas” metafóricas. O planejamento de filhos “perfeitos” via aconselhamento e tratamento genéticos dará destaque negativo aos humanos “não-perfeitos”, nascidos nos padrões naturais... e o natural talvez seja, um dia, obsoleto, antiquado, vil e indesejável. E novamente veremos a humanidade dividida entre “normais” e “anormais” tecnologicamente construídos.

As promessas e conquistas tecnológicas poderão facilmente se transformar em instrumentos regulatórios e discriminadores, a exemplo do que aconteceu a partir do surgimento da Ciência Moderna. Em tempos passados a visão mecanicista do mundo penetrou fundo na idéia, no conceito e no padrão de corpo. Hoje, se olharmos com atenção, enxergaremos o desenvolvimento de uma concepção híbrida de organismo: o ser gênico-robótico.

Para aguçar nosso senso crítico, vale a pena assistir a 3 filmes:

Gattaca – Experiência Genética (1997), de Andrew Niccol;
Eu Robô (2004), de Alex Proyas;
AI: Inteligência artificial (2001), de Steven Spielberg.

Para recomendar esse texto clique no envelope abaixo.
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Palavras-chave: tecnologia e deficiência; padrão de normalidade; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; Ray Pereira.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Diferença funcional e tecnologia (Parte 3)

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O valor da normalidade

Normalidade inicialmente deveria ser apenas um conceito. Mas, o conceito transformou-se em um valor. Um instrumento de poder e status. Se considerarmos apenas os textos médicos e científicos que tratam do assunto, certamente parecerá absurdo pensar na normalidade como um instrumento de poder e status. Aqui fora, no cotidiano, as pessoas são avaliadas e julgadas de acordo com o “bom” ou “mal” funcionamento do corpo. Não há, portanto, espaço para a diversidade, para o funcionamento diferente. Somos, em regra, medidos pelo padrão de normalidade.

Quando perguntam se há tratamento ou cura para a nossa diferença funcional, de fato estão dizendo que há uma condição mais desejável (melhor) que a nossa. E como a diferença incomoda! Incomoda tanto, que estranhos chegam e falam conosco sobre o assunto, usando como mote a matéria que viram na televisão sobre um tratamento... não sabem explicar direito, mas chegam e dizem que a cura está a caminho.

Hoje em dia, com ampla divulgação (algumas vezes, divulgação sensacionalista) de promissoras pesquisas, as pessoas estão alvoroçadas. Há vinte anos, quando minha diferença funcional era recente, não havia alvoroço. Havia um olhar desolado diante de uma condição indesejável, irreversível e inaceitável: “Coitado. Vai ficar preso a está cadeira de rodas prá sempre”.

O forte apelo pela eliminação da diferença não surgiu com o avanço da ciência. Aliás, tanto o apelo como a prática remontam à Antiguidade. As práticas mais grotescas implicavam a eliminação sumária das pessoas diferentes. Eram práticas adotadas sem qualquer objeção familiar, social, religiosa, jurídica. Pasmem, mas todas estas instâncias participavam do processo. Sim. Participavam. Inclusive a família e a Igreja. Eliminava-se a pessoa com sua diferença a um só golpe. Nota-se, assim, que o costume de ver a “deficiência” no lugar da pessoa é algo bem antigo.

Felizmente as coisas mudaram. Mudaram um pouco. Com o avanço da ciência, a medicina desenvolveu formas menos truculentas de eliminar a diferença. O padrão de normalidade serviu para isto: “Não há um espírito mau, ou um pecado na vida/no corpo dessa pessoa. Ela é apenas anormal, ineficiente, incapaz. Mas nós podemos consertá-la. Podemos normalizar os que não se encaixam no nosso padrão de normalidade”.

A medicina tem a chancela da ciência. Este carimbo de qualidade é valiosíssimo. Tão valioso que diariamente vemos na televisão propagandas de produtos “testados cientificamente”. Se é testado, e se e aprovado pela ciência, é bom! Não há o que questionar! É assim que nos comportamos!

Com o padrão legitimado e aceito, a normalidade passou a ser exigida e desejada. Exigida por aqueles que se sentem incomodados com a diferença do outro. Desejada por aqueles que não aceitam a própria diferença. A priori, o desejo de “ser normal” não é um desejo pessoal. Ao contrário, é um desejo social. O desejo de “ser normal” só será pessoal depois de ter passado pelo senso crítico de cada indivíduo. Aí então saberemos responder se aquilo que desejamos é realmente bom, necessário, ou importante para nós...

A ciência é imprescindível para a humanidade. Eu diria até que a ciência é maravilhosa! Mas, a confiança cega na ciência me preocupa. Me preocupa pensar que haverá um forte apelo – senão uma coerção! – social, familiar, midiático em torno das novas possibilidades que a ciência trará para a diversidade funcional.

Hoje temos liberdade para pesquisar. E o cenário é muito promissor para a ciência. Creio que as formas de diferença funcional que conhecemos hoje, desaparecerão no futuro. Em breve, nossas diferenças funcionais serão facilmente compensadas e até eliminadas com artefatos que a ciência nos dará. Tomara que o nosso senso crítico avance com a tecnologia, e não a reboque dela.

As diferenças funcionais poderão ser eliminadas. Mas, ainda assim, seremos diferentes.

Podemos ser “normalizados” e fazer tudo como a maioria faz Mas, ainda assim, seremos diferentes.

A tecnologia fará de nós pessoas mais funcionais. Mas, ainda assim, seremos diferentes.

Ser diferente incomoda. O incômodo causado pela diferença produz preconceito, discriminação, rejeição... Rejeita-se a diferença do outro. Rejeita-se inclusive a própria diferença.

Se a diferença permanecerá, haverá fim para o preconceito?

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Palavras-chave: tecnologia e deficiência; padrão de normalidade; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Diferença funcional e tecnologia (Parte 2)

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A invenção do manual
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Até a Idade Média, questões como doença e diferença funcional eram explicadas com base em argumentos religiosos. Acreditava-se que forças maléficas (e, algumas vezes, benéficas) poderiam causar danos ao corpo, especialmente doenças e deformações.

Com o avanço da medicina e as teorias de Isaac Newton (1643-1727), a concepção de “deficiência” passou a ter contornos muito diferentes daqueles conhecidos até então. A visão mecanicista do universo, herança direta de Newton, fez emergir um resultado desastroso para a questão da diferença, pois o corpo também passou a ser visto e tratado como uma máquina.

O novo modelo científico de corpo transformou as doenças, as diferenças e as excepcionalidades em disfunção (algo ali não estaria funcionando, daí a “disfunção”). Assim, as várias condições consideradas “adversas” ao funcionamento NORMAL do corpo passaram a ser tratadas como uma disfunção em algum componente dessa máquina chamada corpo. Daí em diante, as diferenças funcionais se transformaram em disfuncionalidade, desvio e anormalidade.

A influência da ciência naquele momento era tão expressiva que mesmo a autoridade da Igreja passou a ser questionada e superada. A título de exemplo, o Geocentrismo (teoria que considerava a terra como o centro fixo do sistema solar e do universo criado) era o modelo de universo referendado pela Igreja. O Geocentrismo foi superado e a Ciência Moderna colocou no seu lugar o Heliocentrismo, depois de comprovar que a terra orbitava em torno do sol. Este sim, fixo.

Antes, a Igreja acreditava que as “deficiências” eram produzidas por alguma razão, força ou influência espiritual. Veio a Ciência Moderna e disse: “Não há força espiritual alguma. É apenas um corpo que não funciona como manda o manual de NORMALIDADE da Ciência Moderna”.

Para pensar na companhia do seu travesseiro:

Você que possui uma diferença funcional, qualquer que seja, acha mesmo que você é uma máquina com defeito?

Haverá alguma relação entre o padrão de normalidade e as pesquisas com células-tronco, em cibernética e outros ramos tecnológicos?

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Palavras-chave: tecnologia e deficiência; padrão de normalidade; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Diferença funcional e tecnologia (parte 1)


É mesmo normal ser diferente???

Uma das expectativas mais comuns entre as pessoas com diferença funcional é a eliminação da limitação produzida pela diferença. Para muitos de nós, esta expectativa existe pelo menos em algum momento da vida; para outros, ela torna-se a razão e o sentido da vida. Já convivi com pessoas que investiam todo o seu tempo, energia e recursos na expectativa de reverter/eliminar uma “deficiência”.

Já fui um crítico desta expectativa. Hoje, mais maduro e com uma visão crítica mais aguçada, não vejo razão para criticar uma atitude isolada, uma expectativa isolada. Embora respeite as escolhas de qualquer pessoa (nossas escolhas são sempre legítimas, por melhor ou pior que sejam!), tento refletir sobre o que estaria motivando uma escolha desse tipo.

Tento entender o motivo, a razão, o “por quê?” de se querer tanto e com tanta determinação reverter/eliminar uma “deficiência”. Se você é uma dessas pessoas, já antecipo que torço, torço muito para que você realize seu desejo. Creio, creio firmemente que, num futuro não muito distante, muitas “deficiências” serão eliminadas pela tecnologia. Mas, minha discussão aqui precisa ir além dos casos particulares.

Já me perguntaram assim, na lata: Você não gostaria de voltar a ser normal? Muitas perguntas semelhantes já foram feitas para mim e para a maioria das pessoas que apresentam alguma diferença funcional. E as abordagens são as mais diversas: umas mais, outras menos incisivas, algumas invasivas e indelicadas, outras gentis e até carinhosas. O que há de comum nas perguntas é a expectativa, o desejo e o desconforto diante de uma situação considerada anormal.

É isso. Uma diferença funcional é considerada uma condição “não-natural” – um eufemismo usado para substituir “anormal”, já que nem todos conseguem dizer que uma paraplegia ou uma cegueira são condições anormais.

Normalidade e “deficiência” são duas invenções da Ciência Moderna e da medicina. Antes de resumir esta história, vale lembrar que “deficiência” neste blog é sempre entre aspas (sugiro a leitura dos textos postados em setembro de 2008). É isto mesmo! Normalidade e “deficiência” são conceitos inventados a partir de uma mudança radical no campo das ciências, em geral, e da medicina, em particular.

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Palavras-chave: tecnologia e deficiência; padrão de normalidade; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A natureza humana a olhos vistos: Exploração e diversidade funcional

Num dos e-mails que recebi falando sobre o último post, havia uma curiosa provocação. Daniel, leitor assíduo desse blog, reportou ao parágrafo onde falei da “exploração imoral e desumana produzida onde quer que a diferença se manifeste” e destacou a frase entre parênteses: “pasmem, mas a exploração é assunto para um post inteiro!”. Ele termina o e-mail sugerindo que eu voltasse ao tema “exploração”

As formas de exploração da diferença funcional e as áreas da vida onde elas acontecem não são poucas. Os agentes da exploração que assola a diversidade funcional, é claro, pode ser qualquer um, inclusive “um dos nossos”: há a exploração feita pelos supostamente não-diferentes e a exploração feita entre e pelos próprios indivíduos que apresentam uma determinada diferença funcional (esta última foi amplamente mostrada no filme Ensaio sobre a cegueira). Não há como escolher uma delas e dizer “esta é a pior”, já que ambas desrespeitam, degradam e humilham as pessoas tomadas como objeto da exploração.

Se considerarmos o ponto de vista de quem é explorado, creio que não faz diferença pensar na forma de exploração, já que todas são igualmente humilhantes. Então, sem hierarquizar, vou retomar aqui uma ou duas formas de exploração dentre as indicadas no post passado (exploração sexual, exploração da caridade alheia, exploração da ignorância, exploração da vulnerabilidade, exploração financeira) e, se for necessário, retomo algum ponto ou idéia posteriormente.

O abuso sexual é um tipo de violência muito comum. Curiosamente, e para acentuar ainda mais o asco causado por esta forma de exploração, há casos, e não são poucos, onde o abuso sexual acontece no seio da própria família. Meninas e meninos com diferença funcional, especialmente a diferença funcional intelectual, são vulneráveis, desprotegidos e, portanto, ainda mais sujeitos a esta forma de exploração. Destaquei meninas e meninos com diferença funcional intelectual, mas, de fato, mesmo os adultos, em geral, e mulheres, em particular, estão sujeitos a esta forma de exploração.

O abuso sexual é uma forma infame e criminosa de se ter acesso ao corpo e à intimidade de uma pessoa sem o consentimento dela. Os instrumentos, em regra, são o poder e a força, a truculência e a dominação, daí a covarde preferência dos agressores e agressoras por pessoas que não podem se defender, seja no aspecto físico, seja no psicológico. Tais características, com raras exceções, estão presentes na diferença funcional intelectual.

Na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, proposta pela ONU e já ratificada por dezenas de países (no Brasil a ratificação ainda tramita no Congresso), há um capítulo que trata da prevenção contra a exploração, a violência e o abuso contra as “pessoas com deficiência” (a ONU ainda não acolheu nossa proposta de substituir os termos propostos neste blog...rss). O texto da Convenção reconhece que a exploração, a violência e o abuso associados à diferença funcional ocorrem tanto dentro como fora do lar, e incluem, obviamente, os aspectos de gênero.

A exploração da caridade alheia é outro ponto lamentável e não menos imoral. Me perdoem a franqueza e a objetividade, especialmente porque há pessoas (não creio que seja a maioria) que não sobreviveriam sem pedir esmolas. Mas, efetivamente, há pessoas com diferença funcional que fazem dessa prática o seu modo de ganhar a vida. Se há uma deformação ou amputação nos braços, lá está o indivíduo, sem camisa, mostrando sua deformação... se há uma amputação, uma lesão, ou qualquer outro “dano físico”, tal característica é exposta para mobilizar a caridade alheia.

Esta prática também é uma herança religiosa antiga e maldita dos tempos quando se confinava pessoas com diferença funcional para serem mantidas por ordens religiosas... eram consideradas espiritualmente devedoras e fisicamente incapazes; e para o bem da alma dos caridosos – e somente por isso! – eram acolhidas e protegidas. Tão protegidas que nem aprenderam a cuidar de si mesmas. Nenhum investimento em educação, nenhuma formação profissional, nenhum estímulo ou atitude que pudesse desenvolver a auto-estima e o amor próprio da pessoa. Com isso elas próprias passaram a se valorizar por baixo, ao preço de míseras moedinhas. Com o tempo, esta prática legitimou-se socialmente e hoje, com alguma esperteza, uma diferença funcional pode ser transformada em “fonte de renda”, em instrumento de exploração da fé alheia... Vale dizer que é que igualmente imoral tirar proveito de qualquer situação valendo-se de uma condição física diferente!

Esta cultura da pobreza associada à diferença funcional impregnou a mentalidade de todos, daí o quadro atual. Na prática, hoje em dia até o governo dá esmolas para a diversidade funcional. Para o senso comum, talvez pareça até mais descabido o que acabo de escrever do que um indivíduo pedindo esmolas e tendo como justificativa o fato de não poder andar, enxergar...

Falando em herança religiosa, voltemos nossa atenção para alguns grupos religiosos que se camuflam entre os evangélicos e pentecostais como se pertencessem à mesma estirpe histórica, teológica e doutrinária. São seitas, igrejas e grupos criados nos últimos 30-40 anos e que vivem da exploração da fé e dos recursos financeiros dos seus fieis. Nós, especialmente cadeirantes, cegos, surdos, somos literalmente caçados com promessas de cura. Eu mesmo já fui abordado várias vezes com panfletos, convites e outras formas de “assédio evangelístico”. Confesso que me sinto insultado, mesmo quando não dizem que o demônio está dentro de mim, por isso estou nessa cadeira de rodas.

Aprendi a respeitar qualquer manifestação religiosa. Mas meu respeito pelo sentimento religioso e pela fé que uma pessoa pode ter no coração é infinitamente maior que o respeito que consigo ter por instituições religiosas declaradamente espúrias e não-idôneas. Há relatos de colegas e amigos que (por razões que não cabem discutir ou questionar) se submeteram a estranhos rituais com vistas a uma possível cura. Como a cura não acontece, recebem pela cara uma humilhante frase-consolo do tipo “você não teve fé”.

O que estes grupos religiosos querem é espetáculo. Um espetáculo que possa abarrotar ainda mais seus cofres e melhorar sua duvidosa reputação. Querem tanto tal espetáculo que há situações comprovadas de curas fraudulentas noticiadas pela mídia. Triste forma de exploração da diversidade funcional.
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Uma dica: Se você tem um perfil no Orkut, entre para comunidade Diversidade Funcional. Click no link abaixo e junte-se a nós! http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=75291029