domingo, 30 de novembro de 2008

Entre diferenças e diferenças

Diferença é uma palavra muito comum no vocabulário de todos. Para mim, mais que uma palavra comum, diferença é uma idéia e um conceito. Em meu primeiro livro* uso e abuso do termo. A pergunta “Que diferença faz?” é aplicada a diversas áreas da vida, como corpo, vida, morte, sofrimento, diferença (olha a palavrinha aí...), sexualidade etc. De fato, a pergunta (que diferença faz?) é aplicada às diversas facetas da vida de uma pessoa comum, no geral, e às pessoas com diferença funcional, em particular.

Ultimamente, discutindo os novos termos – tema central deste blog –, a palavra diferença tem sido ainda mais recorrente. Tenho sido questionado sobre o fato de sermos todos diferentes, como se isto não fosse uma condição óbvia. Se há algo em que todos somos iguais, é exatamente no fato de sermos todos diferentes.

Apesar da diferença que nos assemelha, há algo que merece destaque entre tantas diferenças: Sim, somos todos diferentes, mas há algumas diferenças que são estigmatizadas pela sociedade... Esta é a questão central!

Especialmente as diferenças físicas, religiosas, sexuais e étnicas são destacadamente discriminadas. Vejamos alguns exemplos focais:

Pessoas com diferença funcional, seja física, visual ou lingüística, são discriminadas no mercado de trabalho.

Pessoas com orientação sexual diferente (que compõem a diversidade sexual) são discriminadas; em nosso país, lamentavelmente ainda há inúmeras ocorrências de brutal violência contra os gays.

Ao longo dos séculos, as diferenças religiosas produziram – e ainda produzem! – conflitos sociais e guerras. O terrorismo que assola o mundo tem como pano de fundo um conflito religioso.

Os conflitos étnicos e raciais (diferença étnica) estão por toda parte. Merece destaque o racismo histórico e ainda comum no Brasil, mas também em países considerados desenvolvidos, como os EUA e a França.

Por outro lado... Ninguém é discriminado, perseguido ou morto por depender de remédios para fazer funcionar seu intestino. Ninguém enfrenta problemas sociais por ser notívago, mal-humorado, alegre, tímido ou inconveniente. Da mesma forma, ninguém perde o emprego por ter olhos azuis, já a cor da pele... (esta diferença é discriminada!). Se um casal está ‘grávido’ e desempregado, o homem até pode encontrar um trabalho, mas a mulher... É a diferença de gênero... Emprego para uma grávida? Só depois de desmamado o pimpolho. E olhe lá!

Estes exemplos servem para clarificar nossa consciência e ampliar nossa compreensão acerca das diferenças. Sim, somos todos diferentes! Mas algumas diferenças são socialmente aceitas, outras, nem tanto. Outras tantas, absolutamente, não são nem mesmo toleradas. Por outro lado, algumas diferentes são privilegiadas... mas isto é outra história

O fato de sermos todos diferentes em nada invalida a nova terminologia que propomos. Sim, somos todos diferentes, mas uma diferença funcional possui história, características e implicações que em nada se assemelham às diferenças não discriminadas histórica e socialmente. Ao contrário, dizer que funcionamos de forma diferente não nos discrimina, não nos inferioriza, não nos estigmatiza como os termos aplicados comumente à diversidade funcional.

Os termos “deficiência”, “deficiente” e “pessoa com deficiência”, por sua vez, mesmo quando ditos com respeito, delicadeza e carinho reportam a uma condição indigna, inferior e depreciativa. O real sentido desses termos podem ser vistos na vida cotidiana, nas escolas, no transporte público, nas oportunidades de trabalho, no (des)respeito aos direitos e numa cidadania que, infelizmente, ainda não pode ser considerada plena.

Talvez você seja um cadeirante, como eu. Ou um cego, ou surdo. Ou possui alguma característica que torna você uma pessoa diferente da maioria da sociedade... se eu estivesse no seu lugar, termos como “deficiente” e “deficiência”, se aplicados a mim, certamente machucariam meus ouvidos.

* Que diferença faz? Escolhas que marcam... (Ray Pereira, Casa do Psicólogo, 2003)

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quarta-feira, 26 de novembro de 2008

“Deficiência” e diferença funcional

Nossa proposta está ganhando espaço! O termo “diferença” começa a fazer parte do vocabulário de muitas pessoas que usavam naturalmente a palavra “deficiência” para se referir ao que aqui chamamos apenas de diferença.

É curioso observar como a idéia de “deficiência” como disfunção, falta ou limitação impregnou-se no senso comum. Recentemente li um scrap em que o autor insistia que “deficiência” não é um termo depreciativo. Eu tenho insistido que é depreciativo e aprendi isto no Aurélio, o mais tradicional dicionário da língua portuguesa. Quer queiramos ou não, nossa opinião e vontade não são suficientes para mudarmos o significado literal do termo “deficiência”. Mesmo quando o termo é pronunciado com carinho e respeito, seu significado é “falta”, “falha”, “carência”, “imperfeição”, “defeito”, “insuficiência” e “ineficiência”.

A título de exemplo, o significado do termo “deficiência” fica claro quando um de nós não consegue um emprego. A dificuldade de se encontrar um emprego é porque, para o mercado de trabalho, “deficiência” é “falta” de habilidade e “falta” de competência.

E quando os empregadores alegam que o ambiente não está adaptado, é porque enxergam na “deficiência”, um corpo “imperfeito”, ou um “defeito” físico que pode dificultar o desempenho do trabalhador. O mercado de trabalho (com raras e honrosas exceções) considera que somos incapazes antes mesmo de nos testar, e isto ocorre exatamente porque os termos dizem isto, independente de qualquer comprovação prévia.

Os termos “falta”, “falha”, “carência”, “imperfeição”, “defeito”, “insuficiência” e “ineficiência” funcionam como sinônimos de “deficiência”. Podemos facilmente aplicá-los aos vários segmentos da vida cotidiana e o resultado é o mesmo: a “deficiência” aparecerá como uma condição que deprecia e diminui a pessoa que apresenta tal condição.

Uma boa dica para compreendermos melhor o conceito de diversidade funcional é olharmos para o que consideramos ser uma limitação. Se uma escada me limita, o problema não é meu. E a forma de se comprovar isto é testar minha suposta limitação diante da escada, mas também longe dela. Se longe da escada não sou limitado, logo a limitação não está em mim, mas no ambiente físico. Gosto do exemplo da escada porque todo mundo já viu uma. Se as escadas fossem eliminadas – e isto é possível! – nossa limitação diante delas também seria eliminada, independente de qualquer mudança no nosso corpo.

O conceito de diversidade funcional toca exatamente em pontos como o da escada: Não sou incapaz, limitado ou ineficiente diante das escadas. Eu apenas chego ao andar de cima por outros meios. Ou seja, eu funciono de forma diferente diante de um obstáculo físico.

Meus exemplos neste e em outros posts giram muito em torno da acessibilidade ao meio físico. Quero lembrar que a idéia de diversidade funcional não se restringe à acessibilidade. Tenho usado idéias e conceitos que podem facilmente ser aplicados a qualquer diferença funcional.

Algumas vezes esperamos que a sociedade se transforme para nos receber. Isto realmente é necessário. Grande parte das limitações associadas às diferenças funcionais só existem porque são impostas pela sociedade. Então, a sociedade precisa mesmo se transformar. Mas não é somente ela que precisa mudar. Nós também precisamos mudar nossa cabecinha. Precisamos compreender que de nada adianta uma mudança externa se nós mesmos não mudarmos nossa forma de ver o mundo.
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segunda-feira, 17 de novembro de 2008

eu... você... nós... TODOS!

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Minha diferença funcional é uma paraplegia. Para a medicina e o senso comum (espero que por pouco tempo) sou uma “pessoa com deficiência”, ou, simplesmente, “deficiente”. Para meus pares, especialmente aqueles mais antenados, sou um “cadeirante”. Refiro-me aos antigos termos para tratar de três perspectivas relacionadas à diversidade funcional e, por extensão, três formas de nos percebemos e de nos relacionarmos com o mundo: As três perspectivas são EU, NÓS e TODOS.

Aos 20 anos de idade eu perdi meu rótulo de “normal”. Uma perda difícil para boa parte dos contemporâneos dos meus tempos de juventude. Mas, perdi. E, acreditem, o tal rótulo não me tem feito nenhuma falta. Estou, de fato, convicto de que a normalidade é uma invenção da medicina e da ciência moderna.

Meu jeito irônico de retratar o passado serve para introduzir a primeira perspectiva. Trata-se de um momento inicial, de imaturidade e egoísmo ingênuo quando no centro de tudo está a minha própria dor e o meu luto pela perda da “normalidade”. É uma dor legítima e que precisa mesmo ser vivida e esgotada, caso contrário ficaremos presos no passado. É uma fase em que nosso EU está no centro de tudo, mobilizando preocupações da família, dos amigos e, algumas vezes, até mesmo de estranhos e curiosos. É uma fase em que demonstrações de carinho, compreensão e respeito são muito bem-vindos e necessários. Mas é também uma fase perigosa, pois as garras do paternalismo e da autocomiseração estão afiadíssimas tentando nos devorar.

Em algum momento nosso isolamento e ingenuidade são quebrados. Descobrimos que não estamos sozinhos no mundo com nossa diferença. Descobrimos que há outros como nós, que também são diferentes. Ainda me lembro da primeira pessoa com diferença funcional a se tornar minha amiga. As primeiras identificações e trocas de informação são muito importantes para o nosso desenvolvimento tanto físico como “ideológico”. A importância do contato entre pares extrapolou o cotidiano da diversidade funcional, tornando-se um dos pilares do Movimento de Vida Independente (fica aqui a promessa de escrever sobre Vida Independente num post futuro.).

Saímos, assim, de um exílio solitário nas entranhas do nosso EU e descobrimos o outro. Descobrimos o outro, outros e tantos outros e, juntos, nos tornamos NÓS. NOSsa diferença, antes um fenômeno pessoal, isolado, transformou-se num grande grupo de diferentes e passamos a conviver, a trocar experiências, idéias... Depois de amadurecidos como grupo, como NÓS, passamos a lutar juntos por uma causa que revelou-se comum: os direitos, a não discriminação, a acessibilidade, o emprego, o pleno exercício da cidadania e tantos outros tópicos convergentes.

Mas as coisas mudaram. E mudaram muito!... Não sou mais um EU imaturo e isolado. E, apesar de NOSsas diferenças comuns, NOSso grupo não sobreviverá por muito tempo se não alargamos NOSsa visão e NOSsos horizontes. Se não sairmos do NOSso tão confortável gueto.

Eu e você, com nossas diferenças funcionais, precisamos aprender a olhar além do nosso próprio umbigo. E como grupo, ou gueto, precisamos olhar além dos NOSsos horizontes obsoletos... Em plena Era Espacial, preservar valores grupais obsoletos e reforçar fronteiras ideológicas caducas é um retrocesso medieval... A Era Espacial está ensinando aos humanos que no universo não há fronteiras, nem horizontes. E se o universo é uma gigantesca metáfora da vida que levamos aqui como organismo, é hora de assimilarmos juntos a idéia de que EU sozinho não sou nada, da mesma forma que NÓS também, isolados do mundo, nada somos.

Este é o tempo de TODOS. Chega de transformar nossas diferenças funcionais em antolhos! Precisamos enxergar, literal e metaforicamente, a TODOS. Digo metaforicamente porque no meu TODOS cabe a diferença funcional visual, assim como cabem todas as diferenças. Temos nossas demandas, sonhos, ideais e valores individuais e grupais, mas acima destas instâncias está o mundo, a dimensão maior, o TODOS.

Estamos ensaiando viver nesse novo tempo, o tempo de TODOS. Durante o ensaio aprendemos, aperfeiçoamos. Mas durante o ensaio também é permitido errar. Então, que nossos acertos superem os nossos erros.

Que a minha diferença, a sua e de cada um isoladamente, seja um fator de soma. Jamais de subtração ou divisão. Afinal, eu e você fazemos parte do TODOS.


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Palavras-chave: cidadania; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física.

domingo, 16 de novembro de 2008

Autonomia e cadeiras elétricas

Esta semana recebi alguns e-mails inspirados no texto “Tênis com molas para cadeirantes?”, postado na semana passada. As situações do cotidiano são ótimas para ilustrar as discussões desse blog e, como no episódio do tênis, o fato que vou comentar agora é real. Tão real quanto engraçado! Aconteceu esta semana, no elevador do prédio onde fica meu consultório.

Um senhor entrou no elevador junto comigo. Ele me olhou, olhou a cadeira de rodas e, gentilmente, me fez uma sugestão: “A cadeira elétrica não é melhor?”. “De forma nenhuma”, respondi enfaticamente, mas já com um inconfundível sorriso irônico. “Cadeira elétrica mata”, concluí. Ele sorriu, entendendo a brincadeira, e completou: “Não, não. É aquela do motorzinho...”

Desde a mais remota antiguidade, as diferenças funcionais são experiências perturbadoras para a sociedade. No passado, assim como ainda hoje, não se sabia e não se sabe exatamente o que fazer com o desconforto causado pelas diferenças. Por isso, algumas iniciativas são maravilhosas, outras são desastrosas. Quando alguém olha para minha diferença, esse olhar está contaminado por uma longa história de desconforto social em relação às diferenças. Esse mesmo desconforto, nas devidas proporções socioculturais relativas a cada época, fez surgir, por exemplo, a eliminação de crianças com diferenças funcionais na Grécia antiga; nos tempos da Inquisição, a diferença funcional intelectual (condição mais conhecida como “deficiência mental”) levou muitas crianças e suas respectivas mães às fogueiras; atualmente, a eliminação é bem mais sutil, mas não menos dolorosa, moralmente falando. Nós que compomos a diversidade funcional somos simbolicamente eliminados das escolas, do transporte público, do mercado de trabalho, do lazer e de tantos outros segmentos da vida social.

Quando alguém sem nenhum conhecimento de causa manifesta sua opinião sobre o melhor tipo de cadeira, ou mesmo quando se profetiza que as células-tronco vão trazer a cura para nossas diferenças, de fato nossos interlocutores não estão falando para nós, mas, para eles mesmos. Estas e tantas outras abordagens semelhantes costumam ser feitas com certa gentileza, sinceridade e delicadeza, mas, como ocorreu na história do tênis (post passado), tais abordagens não consideram nossa autonomia, nossa preferência, nosso gosto, nossa capacidade e direito de agir e falar por nós mesmos. Um pouco de senso crítico é suficiente para analisar a pergunta “a cadeira elétrica não é melhor?” e entender que a pergunta pressupõe que não sabemos escolher a própria cadeira. Certamente que alguns leitores pensarão que estou exagerando no meu senso crítico. Mas, antes de qualquer crítica ao meu suposto exagero, vale considerar exemplos externos à diversidade funcional, mas que também envolvem autonomia e livre escolha. Vejamos:

Alguém já te abordou na fila do cinema, sugerindo que o filme da sala ao lado é melhor que o filme que você escolheu?
Alguém já te abordou no caixa de um supermercado, sugerindo que há um tipo de iogurte mais saboroso que o do seu carrinho?

Não vejo muita diferença entre o filme, o iogurte e a cadeira. Convenhamos, ninguém escolheu ter uma diferença funcional como se escolhe um iogurte. Claro. Mas, ainda assim, preciso ressaltar que os comentários, opiniões, gentilezas e inconveniências do cotidiano são influenciados por séculos e séculos de tutela absoluta em relação às pessoas com diferença funcional. Desde os tempos mais remotos a tutela vem passando de mão em mão e, dessa forma, a família, a igreja, a ciência, medicina e os técnicos têm falado em nosso nome. Precisamos usar mais e mais nossa voz, fazer valer nossa opinião e percepção acerca de nós mesmos. A preocupação – ou mesmo a mera curiosidade, ou a falta de assunto... – com o tipo de cadeira é um resquício distante da tutela social.

Se você, como eu, tem uma diferença funcional certamente já se deparou com situações em que você foi ignorado. Isto acontece nos consultórios médicos, no comércio, nas repartições públicas, nos restaurantes e em tantos outros lugares, nas circunstâncias em que a pessoa que nos acompanha (aparentemente pessoas “normais”) é abordada com perguntas que deveriam ser feitas a nós e não à pessoa que nos acompanha. Já perguntaram para minha mulher o número da minha identidade, o meu convênio, o meu endereço... algumas vezes eu brinco dizendo que minha diferença funcional é física e que sei e posso falar por mim; outras vezes ela própria sugere que a pessoa interessada pergunte a mim.

Há vários nomes para este tipo de comportamento. Mas, independente dos nomes, o que se destaca aqui é o descaso associado à falsa idéia de que não temos autonomia para responder a uma simples pergunta, ou escolher, seja pelo gosto ou pelo bolso, nossa própria cadeira de rodas.

As abordagens podem ser amistosas, sinceras, mas também podem ser paternalistas, inconvenientes e invasivas. Pior ainda é quando uma abordagem inconveniente é feita exatamente naquele dia em que estamos de mau humor. Costumo dizer que não me sinto na obrigação de estar sempre bem humorado diante de abordagens inconvenientes, daí minha disposição tanto para responder “na boa”, como para ignorar certas abordagens. Certa vez, numa dessas abordagens inconvenientes, um senhor comentou comigo o seguinte: “Deve ser terrível ser assim (apontando o dedo para baixo, na direção da cadeira)”. Este comentário é uma projeção, como diria Freud... De fato aquele senhor estava dizendo que, para ele, estar numa cadeira de rodas seria uma experiência terrível.

Fico pensando se o comentário sobre a cadeira elétrica não tinha o mesmo sentido deste último... E aí fica no ar a pergunta: Afinal, a cadeira elétrica (a que mata!) seria para ele próprio ou para mim???
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física; cadeira de rodas.

sábado, 8 de novembro de 2008

Tênis com molas para cadeirantes?....

Um dia desses entrei numa grande loja de tênis e saí de lá inspirado. Estava com minha mulher e a idéia era comprar um tênis para ela. Em geral, os vendedores de lojas de shopping centers são muito atenciosos. Alguns são inconvenientes de tão atenciosos. O rapaz que nos atendeu foi atencioso e fiquei grato a ele (ele não sabe disso, creio) pelo quanto me fez refletir sobre nós, pessoas que fazemos parte da diversidade funcional.

“Queremos ver uns tênis”, eu disse. Imediatamente ele apontou para um expositor na parede, com vários modelos, todos tão bonitos quanto caros. O rapaz me olhou nos olhos e afirmou, convicto: “Este modelo é o melhor que temos. As molas são produzidas com uma tecnologia avançada e proporciona muito conforto... Qual é mesmo o seu número?”

Com um toque de bom humor e uma pitada de ironia eu questionei: “Você tem certeza que este é o melhor?” Percebendo minha ironia, ele afirmou que sim, mas sua convicção já não era a mesma. Só então ele percebeu que as molas de alta tecnologia daquele tênis não tinham a menor utilidade para um cadeirante que não sai correndo ou pulando por aí.

Tênis com molas são uma boa metáfora para se pensar a diferença funcional. Pode parecer absurdo, mas aquele rapaz agiu exatamente como age a sociedade, o governo, as escolas... Não, ele não era um vendedor despreparado! Ele realmente me ofereceu um bom produto. Talvez fosse mesmo o melhor. Um modelo bonito, confortável, preferido por muitos usuários de tênis.

Tem sido assim, ao longo de muitas décadas, ao longo de muitos séculos. Os governantes com suas políticas públicas, as escolas com seus programas pedagógicos, a população com sua “generosidade”, o transporte público, os equipamentos urbanos e tantos outros segmentos sociais agem da mesma forma: oferecem para nós aquilo que parece ser bom para a maioria. Padronizam a sociedade com base numa tal norma estatística e com isto acabamos sendo prejudicados e tratados como incapazes e ineficientes (como tenho dito, este é o sentido da expressão “pessoa com deficiência”).

O mesmo episódio do “melhor tênis” serve também para ilustrar os pontos em que os vários segmentos sociais erram no tratamento dispensado à diversidade funcional. Vejamos:

Aquele vendedor não fez a pergunta-chave, não procurou saber para quem era o tênis. Ele foi logo oferecendo o que tinha de melhor, já que a preferência da maioria parece ratificar a qualidade do referido produto. Grande engano! Por ser o melhor para a maioria, não significa que vá atender minha necessidade, meu gosto e meu bolso. Talvez para aquele rapaz, todos os pés são iguais, da mesma forma que para o senso comum todas as diferenças funcionais são iguais.

Estamos cercados de gente competente, gente bem preparada, bem intencionada, mas que, como aquele vendedor, estão generalizando particularidades. O conceito de diversidade funcional, como nenhum outro, contempla demandas específicas exatamente na sua especificidade. Cada um de nós é diferente, mesmo que você, como eu, use uma cadeira de rodas. A cadeira de rodas não nos iguala. Muito pelo contrário! Somos todos diferentes em nossas diferenças e é exatamente por isso que somos apenas semelhantes. Funcionamos, cada um, de forma diferente, mesmo que nossas diferenças sejam semelhantes.

Talvez não haja descaso por parte dos governantes (vamos dar um voto de confiança para os nossos políticos pelo menos para ilustrar meu post de hoje). Falta, na verdade, conhecimento de causa. Ainda não fomos olhados como pessoas, especialmente como pessoas diferentes entre si. Por isso nos impõem com adaptações cosméticas os mesmos meios de transporte, os mesmos programas pedagógicos, as mesmas políticas públicas destinados à população em geral.

Precisamos, todos nós, todos mesmo, reconhecer e respeitar nossas diferenças. Foi-se o tempo em que podíamos terceirizar as responsabilidades e os desmandos que afetavam e afetam as pessoas com diferença funcional. Pensar a diferença é papel de todos. E, para não ser atropelado pela maioria, quando te oferecerem um belo par de tênis, com molas de última geração, reflita bem antes de aceitar. Ele pode até ficar muito bem nos seus pés, mas a escolha terá que ser, de fato, sua! O que dizem ser melhor para a maioria, costuma não ser bom pra ninguém...
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Comunidade Diversidade Funcional no Orkut

Caro leitor, precisamos de você!

O texto abaixo é de uma comunidade no Orkut. Você está convidado a fazer parte. Mesmo que você não tenha nenhuma diferença funcional, como membro da diversidade humana você também é nosso convidado. Junte-se a nós!

O espaço para o texto de abertura da comunidade é limitado. Lá você encontrará uma desse post.

Comunidade DIVERSIDADE FUNCIONAL
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=75291029


Esta comunidade acredita que é possível mudar radicalmente a terminologia usada para se referir às pessoas diferentes, especialmente as diferenças físicas, visuais, lingüísticas e intelectuais.

Estamos (mal) acostumados a usar termos que enfatizam uma suposta limitação física. São termos preconceituosos e inadequados, como deficiente, deficiência, pessoa deficiente, portador de deficiência, portador de necessidades especiais, e assim por diante.

O modelo de homem padrão tornou-se um conceito, uma medida com a qual se avalia o desempenho do corpo e das pessoas. O que não cabe nesta medida é descartado, é inadequado, é tratado como inferior. O que ficou conhecido como "deficiência" foi inventado exatamente dessa forma. O funcionamento dos órgãos e partes do corpo precisou ser adjetivado desde então, e a chamada "deficiência", embora gramaticalmente um substantivo, tornou-se, para efeitos práticos, um adjetivo de exclusão... "deficiência" é exatamente isto: ineficiência.

Então, junte-se a nós e mude sua maneira de falar, escrever e pensar:

Vamos substituir a palavra “deficiência” por DIFERENÇA FUNCIONAL.

Vamos substituir o coletivo “pessoas deficientes” ou “pessoas portadores de deficiência” por DIVERSIDADE FUNCIONAL.

Se você é cadeirante, você tem uma diferença funcional física.

Se você é cego, tem uma diferença funcional visual.

Os surdos possuem uma diferença funcional lingüística.

A deficiência mental recentemente passou a ser chamada de deficiência intelectual, mas vamos nos referir a essa condição como diferença funcional intelectual.

Não somos ineficientes (“deficientes”), apenas funcionamos de maneira diferente!

Somos todos diferentes e precisamos (eu, você, nós todos!) compreender de uma vez por todas que nossas diferenças (a minha, a sua, as nossas!) é de fato nosso maior patrimônio. Com nossas diferenças formamos a rica diversidade humana!

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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.

domingo, 2 de novembro de 2008

“Anatomia da diferença... Do que trata este livro?”

A Livraria da Travessa (www.travessa.com.br) é um ambiente muito aconchegante e charmoso, freqüentado por intelectuais e pessoas que amam ler. Estar ali autografando é um prazer mesmo para os autores já acostumados com o sucesso. Já no finalzinho da noite de autógrafos um cliente da livraria aproximou-se de mim e pediu que eu falasse em poucas palavras qual era o ponto alto do meu texto. Falei por uns poucos minutos, enquanto ele acenava positivamente com a cabeça. O cliente levou dois livros, um para ele e outro para dar de presente a um fisioterapeuta amigo da família.

A abordagem do cliente não é um fato isolado. Falar resumidamente sobre um livro (tarefa quase impossível, eu diria) é uma solicitação freqüente. Por outro lado, fazer a mesma síntese escrevendo, especialmente escrevendo para um blog, é bem mais tranqüilo. A curiosidade daquele cliente pode ser também a sua, então, aí está um breve comentário sobre o livro Anatomia da diferença.

Há três aspectos que considero importantes nesse novo livro:

Poucas pessoas sabem que há uma história milenar conduzindo o pensamento, os conceitos e as práticas sociais, religiosas, educacionais e políticas que envolvem a diversidade funcional. Acredita-se que as várias diferenças funcionais são meras conseqüências de doenças, acidentes e, pasmem, até mesmo castigo divino. Daí a importância de um texto que expõe com clareza e sensibilidade as origens e os desdobramentos do que hoje parece ser apenas fatos isolados ou tragédias pessoais.

Um segundo aspecto igualmente importante é a abrangência que a diferença funcional adquire quando é discutida e tratada como um fenômeno próprio da natureza humana, porém agravado pelas práticas sociais, políticas, religiosas, educacionais etc. Aquilo que parecia ser uma realidade adversa, exclusiva de uns poucos, torna-se uma realidade que alcança a todos em algum momento da vida. Gosto do exemplo da rampa de acesso para ilustrar este aspecto: a rampa que me atende hoje por ser usuário de uma cadeira de rodas (minha diferença funcional é uma paraplegia) atende também à mãe que empurra o carrinho de bebê, atende aos que estão temporariamente funcionando de forma diferente, dependendo de um instrumento qualquer (bengala, andador, ou mesmo uma cadeira de rodas) e atende aos idosos que, via de regra, preferem uma rampa, a ter que subir escadas. Trocando em miúdos, a rampa que atende a um cadeirante hoje, será útil para todos em algum momento da vida.

O terceiro aspecto é talvez o mais relevante. Praticamente tudo o que se sabe sobre diversidade funcional foi produzido por pessoas que não têm qualquer experiência direta com uma diferença funcional. Os conceitos, as teorias, as explicações, orientações e, conseqüentemente, os textos, são em sua maioria, produzidos por técnicos da área de saúde, educadores, pesquisadores ou curiosos que olham as diferenças funcionais “de fora”, sem qualquer experiência vivencial direta. Anatomia da diferença: Normalidade, deficiência e outras invenções é um livro produzido por alguém que convive com a diferença, ou seja, experimenta na carne e no cotidiano o que é a diferença funcional. Esta experiência direta, aliada ao conhecimento teórico, confere ao livro um caráter realmente diferenciado.

Anatomia da diferença é mais que um livro. É, de fato, uma nova abordagem daquilo que a sociedade conhece como “deficiência”. Depois de ler o livro certamente você duvidará do seu status de “pessoa normal”.