domingo, 30 de novembro de 2008

Entre diferenças e diferenças

Diferença é uma palavra muito comum no vocabulário de todos. Para mim, mais que uma palavra comum, diferença é uma idéia e um conceito. Em meu primeiro livro* uso e abuso do termo. A pergunta “Que diferença faz?” é aplicada a diversas áreas da vida, como corpo, vida, morte, sofrimento, diferença (olha a palavrinha aí...), sexualidade etc. De fato, a pergunta (que diferença faz?) é aplicada às diversas facetas da vida de uma pessoa comum, no geral, e às pessoas com diferença funcional, em particular.

Ultimamente, discutindo os novos termos – tema central deste blog –, a palavra diferença tem sido ainda mais recorrente. Tenho sido questionado sobre o fato de sermos todos diferentes, como se isto não fosse uma condição óbvia. Se há algo em que todos somos iguais, é exatamente no fato de sermos todos diferentes.

Apesar da diferença que nos assemelha, há algo que merece destaque entre tantas diferenças: Sim, somos todos diferentes, mas há algumas diferenças que são estigmatizadas pela sociedade... Esta é a questão central!

Especialmente as diferenças físicas, religiosas, sexuais e étnicas são destacadamente discriminadas. Vejamos alguns exemplos focais:

Pessoas com diferença funcional, seja física, visual ou lingüística, são discriminadas no mercado de trabalho.

Pessoas com orientação sexual diferente (que compõem a diversidade sexual) são discriminadas; em nosso país, lamentavelmente ainda há inúmeras ocorrências de brutal violência contra os gays.

Ao longo dos séculos, as diferenças religiosas produziram – e ainda produzem! – conflitos sociais e guerras. O terrorismo que assola o mundo tem como pano de fundo um conflito religioso.

Os conflitos étnicos e raciais (diferença étnica) estão por toda parte. Merece destaque o racismo histórico e ainda comum no Brasil, mas também em países considerados desenvolvidos, como os EUA e a França.

Por outro lado... Ninguém é discriminado, perseguido ou morto por depender de remédios para fazer funcionar seu intestino. Ninguém enfrenta problemas sociais por ser notívago, mal-humorado, alegre, tímido ou inconveniente. Da mesma forma, ninguém perde o emprego por ter olhos azuis, já a cor da pele... (esta diferença é discriminada!). Se um casal está ‘grávido’ e desempregado, o homem até pode encontrar um trabalho, mas a mulher... É a diferença de gênero... Emprego para uma grávida? Só depois de desmamado o pimpolho. E olhe lá!

Estes exemplos servem para clarificar nossa consciência e ampliar nossa compreensão acerca das diferenças. Sim, somos todos diferentes! Mas algumas diferenças são socialmente aceitas, outras, nem tanto. Outras tantas, absolutamente, não são nem mesmo toleradas. Por outro lado, algumas diferentes são privilegiadas... mas isto é outra história

O fato de sermos todos diferentes em nada invalida a nova terminologia que propomos. Sim, somos todos diferentes, mas uma diferença funcional possui história, características e implicações que em nada se assemelham às diferenças não discriminadas histórica e socialmente. Ao contrário, dizer que funcionamos de forma diferente não nos discrimina, não nos inferioriza, não nos estigmatiza como os termos aplicados comumente à diversidade funcional.

Os termos “deficiência”, “deficiente” e “pessoa com deficiência”, por sua vez, mesmo quando ditos com respeito, delicadeza e carinho reportam a uma condição indigna, inferior e depreciativa. O real sentido desses termos podem ser vistos na vida cotidiana, nas escolas, no transporte público, nas oportunidades de trabalho, no (des)respeito aos direitos e numa cidadania que, infelizmente, ainda não pode ser considerada plena.

Talvez você seja um cadeirante, como eu. Ou um cego, ou surdo. Ou possui alguma característica que torna você uma pessoa diferente da maioria da sociedade... se eu estivesse no seu lugar, termos como “deficiente” e “deficiência”, se aplicados a mim, certamente machucariam meus ouvidos.

* Que diferença faz? Escolhas que marcam... (Ray Pereira, Casa do Psicólogo, 2003)

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quarta-feira, 26 de novembro de 2008

“Deficiência” e diferença funcional

Nossa proposta está ganhando espaço! O termo “diferença” começa a fazer parte do vocabulário de muitas pessoas que usavam naturalmente a palavra “deficiência” para se referir ao que aqui chamamos apenas de diferença.

É curioso observar como a idéia de “deficiência” como disfunção, falta ou limitação impregnou-se no senso comum. Recentemente li um scrap em que o autor insistia que “deficiência” não é um termo depreciativo. Eu tenho insistido que é depreciativo e aprendi isto no Aurélio, o mais tradicional dicionário da língua portuguesa. Quer queiramos ou não, nossa opinião e vontade não são suficientes para mudarmos o significado literal do termo “deficiência”. Mesmo quando o termo é pronunciado com carinho e respeito, seu significado é “falta”, “falha”, “carência”, “imperfeição”, “defeito”, “insuficiência” e “ineficiência”.

A título de exemplo, o significado do termo “deficiência” fica claro quando um de nós não consegue um emprego. A dificuldade de se encontrar um emprego é porque, para o mercado de trabalho, “deficiência” é “falta” de habilidade e “falta” de competência.

E quando os empregadores alegam que o ambiente não está adaptado, é porque enxergam na “deficiência”, um corpo “imperfeito”, ou um “defeito” físico que pode dificultar o desempenho do trabalhador. O mercado de trabalho (com raras e honrosas exceções) considera que somos incapazes antes mesmo de nos testar, e isto ocorre exatamente porque os termos dizem isto, independente de qualquer comprovação prévia.

Os termos “falta”, “falha”, “carência”, “imperfeição”, “defeito”, “insuficiência” e “ineficiência” funcionam como sinônimos de “deficiência”. Podemos facilmente aplicá-los aos vários segmentos da vida cotidiana e o resultado é o mesmo: a “deficiência” aparecerá como uma condição que deprecia e diminui a pessoa que apresenta tal condição.

Uma boa dica para compreendermos melhor o conceito de diversidade funcional é olharmos para o que consideramos ser uma limitação. Se uma escada me limita, o problema não é meu. E a forma de se comprovar isto é testar minha suposta limitação diante da escada, mas também longe dela. Se longe da escada não sou limitado, logo a limitação não está em mim, mas no ambiente físico. Gosto do exemplo da escada porque todo mundo já viu uma. Se as escadas fossem eliminadas – e isto é possível! – nossa limitação diante delas também seria eliminada, independente de qualquer mudança no nosso corpo.

O conceito de diversidade funcional toca exatamente em pontos como o da escada: Não sou incapaz, limitado ou ineficiente diante das escadas. Eu apenas chego ao andar de cima por outros meios. Ou seja, eu funciono de forma diferente diante de um obstáculo físico.

Meus exemplos neste e em outros posts giram muito em torno da acessibilidade ao meio físico. Quero lembrar que a idéia de diversidade funcional não se restringe à acessibilidade. Tenho usado idéias e conceitos que podem facilmente ser aplicados a qualquer diferença funcional.

Algumas vezes esperamos que a sociedade se transforme para nos receber. Isto realmente é necessário. Grande parte das limitações associadas às diferenças funcionais só existem porque são impostas pela sociedade. Então, a sociedade precisa mesmo se transformar. Mas não é somente ela que precisa mudar. Nós também precisamos mudar nossa cabecinha. Precisamos compreender que de nada adianta uma mudança externa se nós mesmos não mudarmos nossa forma de ver o mundo.
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segunda-feira, 17 de novembro de 2008

eu... você... nós... TODOS!

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Minha diferença funcional é uma paraplegia. Para a medicina e o senso comum (espero que por pouco tempo) sou uma “pessoa com deficiência”, ou, simplesmente, “deficiente”. Para meus pares, especialmente aqueles mais antenados, sou um “cadeirante”. Refiro-me aos antigos termos para tratar de três perspectivas relacionadas à diversidade funcional e, por extensão, três formas de nos percebemos e de nos relacionarmos com o mundo: As três perspectivas são EU, NÓS e TODOS.

Aos 20 anos de idade eu perdi meu rótulo de “normal”. Uma perda difícil para boa parte dos contemporâneos dos meus tempos de juventude. Mas, perdi. E, acreditem, o tal rótulo não me tem feito nenhuma falta. Estou, de fato, convicto de que a normalidade é uma invenção da medicina e da ciência moderna.

Meu jeito irônico de retratar o passado serve para introduzir a primeira perspectiva. Trata-se de um momento inicial, de imaturidade e egoísmo ingênuo quando no centro de tudo está a minha própria dor e o meu luto pela perda da “normalidade”. É uma dor legítima e que precisa mesmo ser vivida e esgotada, caso contrário ficaremos presos no passado. É uma fase em que nosso EU está no centro de tudo, mobilizando preocupações da família, dos amigos e, algumas vezes, até mesmo de estranhos e curiosos. É uma fase em que demonstrações de carinho, compreensão e respeito são muito bem-vindos e necessários. Mas é também uma fase perigosa, pois as garras do paternalismo e da autocomiseração estão afiadíssimas tentando nos devorar.

Em algum momento nosso isolamento e ingenuidade são quebrados. Descobrimos que não estamos sozinhos no mundo com nossa diferença. Descobrimos que há outros como nós, que também são diferentes. Ainda me lembro da primeira pessoa com diferença funcional a se tornar minha amiga. As primeiras identificações e trocas de informação são muito importantes para o nosso desenvolvimento tanto físico como “ideológico”. A importância do contato entre pares extrapolou o cotidiano da diversidade funcional, tornando-se um dos pilares do Movimento de Vida Independente (fica aqui a promessa de escrever sobre Vida Independente num post futuro.).

Saímos, assim, de um exílio solitário nas entranhas do nosso EU e descobrimos o outro. Descobrimos o outro, outros e tantos outros e, juntos, nos tornamos NÓS. NOSsa diferença, antes um fenômeno pessoal, isolado, transformou-se num grande grupo de diferentes e passamos a conviver, a trocar experiências, idéias... Depois de amadurecidos como grupo, como NÓS, passamos a lutar juntos por uma causa que revelou-se comum: os direitos, a não discriminação, a acessibilidade, o emprego, o pleno exercício da cidadania e tantos outros tópicos convergentes.

Mas as coisas mudaram. E mudaram muito!... Não sou mais um EU imaturo e isolado. E, apesar de NOSsas diferenças comuns, NOSso grupo não sobreviverá por muito tempo se não alargamos NOSsa visão e NOSsos horizontes. Se não sairmos do NOSso tão confortável gueto.

Eu e você, com nossas diferenças funcionais, precisamos aprender a olhar além do nosso próprio umbigo. E como grupo, ou gueto, precisamos olhar além dos NOSsos horizontes obsoletos... Em plena Era Espacial, preservar valores grupais obsoletos e reforçar fronteiras ideológicas caducas é um retrocesso medieval... A Era Espacial está ensinando aos humanos que no universo não há fronteiras, nem horizontes. E se o universo é uma gigantesca metáfora da vida que levamos aqui como organismo, é hora de assimilarmos juntos a idéia de que EU sozinho não sou nada, da mesma forma que NÓS também, isolados do mundo, nada somos.

Este é o tempo de TODOS. Chega de transformar nossas diferenças funcionais em antolhos! Precisamos enxergar, literal e metaforicamente, a TODOS. Digo metaforicamente porque no meu TODOS cabe a diferença funcional visual, assim como cabem todas as diferenças. Temos nossas demandas, sonhos, ideais e valores individuais e grupais, mas acima destas instâncias está o mundo, a dimensão maior, o TODOS.

Estamos ensaiando viver nesse novo tempo, o tempo de TODOS. Durante o ensaio aprendemos, aperfeiçoamos. Mas durante o ensaio também é permitido errar. Então, que nossos acertos superem os nossos erros.

Que a minha diferença, a sua e de cada um isoladamente, seja um fator de soma. Jamais de subtração ou divisão. Afinal, eu e você fazemos parte do TODOS.


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Palavras-chave: cidadania; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física.

domingo, 16 de novembro de 2008

Autonomia e cadeiras elétricas

Esta semana recebi alguns e-mails inspirados no texto “Tênis com molas para cadeirantes?”, postado na semana passada. As situações do cotidiano são ótimas para ilustrar as discussões desse blog e, como no episódio do tênis, o fato que vou comentar agora é real. Tão real quanto engraçado! Aconteceu esta semana, no elevador do prédio onde fica meu consultório.

Um senhor entrou no elevador junto comigo. Ele me olhou, olhou a cadeira de rodas e, gentilmente, me fez uma sugestão: “A cadeira elétrica não é melhor?”. “De forma nenhuma”, respondi enfaticamente, mas já com um inconfundível sorriso irônico. “Cadeira elétrica mata”, concluí. Ele sorriu, entendendo a brincadeira, e completou: “Não, não. É aquela do motorzinho...”

Desde a mais remota antiguidade, as diferenças funcionais são experiências perturbadoras para a sociedade. No passado, assim como ainda hoje, não se sabia e não se sabe exatamente o que fazer com o desconforto causado pelas diferenças. Por isso, algumas iniciativas são maravilhosas, outras são desastrosas. Quando alguém olha para minha diferença, esse olhar está contaminado por uma longa história de desconforto social em relação às diferenças. Esse mesmo desconforto, nas devidas proporções socioculturais relativas a cada época, fez surgir, por exemplo, a eliminação de crianças com diferenças funcionais na Grécia antiga; nos tempos da Inquisição, a diferença funcional intelectual (condição mais conhecida como “deficiência mental”) levou muitas crianças e suas respectivas mães às fogueiras; atualmente, a eliminação é bem mais sutil, mas não menos dolorosa, moralmente falando. Nós que compomos a diversidade funcional somos simbolicamente eliminados das escolas, do transporte público, do mercado de trabalho, do lazer e de tantos outros segmentos da vida social.

Quando alguém sem nenhum conhecimento de causa manifesta sua opinião sobre o melhor tipo de cadeira, ou mesmo quando se profetiza que as células-tronco vão trazer a cura para nossas diferenças, de fato nossos interlocutores não estão falando para nós, mas, para eles mesmos. Estas e tantas outras abordagens semelhantes costumam ser feitas com certa gentileza, sinceridade e delicadeza, mas, como ocorreu na história do tênis (post passado), tais abordagens não consideram nossa autonomia, nossa preferência, nosso gosto, nossa capacidade e direito de agir e falar por nós mesmos. Um pouco de senso crítico é suficiente para analisar a pergunta “a cadeira elétrica não é melhor?” e entender que a pergunta pressupõe que não sabemos escolher a própria cadeira. Certamente que alguns leitores pensarão que estou exagerando no meu senso crítico. Mas, antes de qualquer crítica ao meu suposto exagero, vale considerar exemplos externos à diversidade funcional, mas que também envolvem autonomia e livre escolha. Vejamos:

Alguém já te abordou na fila do cinema, sugerindo que o filme da sala ao lado é melhor que o filme que você escolheu?
Alguém já te abordou no caixa de um supermercado, sugerindo que há um tipo de iogurte mais saboroso que o do seu carrinho?

Não vejo muita diferença entre o filme, o iogurte e a cadeira. Convenhamos, ninguém escolheu ter uma diferença funcional como se escolhe um iogurte. Claro. Mas, ainda assim, preciso ressaltar que os comentários, opiniões, gentilezas e inconveniências do cotidiano são influenciados por séculos e séculos de tutela absoluta em relação às pessoas com diferença funcional. Desde os tempos mais remotos a tutela vem passando de mão em mão e, dessa forma, a família, a igreja, a ciência, medicina e os técnicos têm falado em nosso nome. Precisamos usar mais e mais nossa voz, fazer valer nossa opinião e percepção acerca de nós mesmos. A preocupação – ou mesmo a mera curiosidade, ou a falta de assunto... – com o tipo de cadeira é um resquício distante da tutela social.

Se você, como eu, tem uma diferença funcional certamente já se deparou com situações em que você foi ignorado. Isto acontece nos consultórios médicos, no comércio, nas repartições públicas, nos restaurantes e em tantos outros lugares, nas circunstâncias em que a pessoa que nos acompanha (aparentemente pessoas “normais”) é abordada com perguntas que deveriam ser feitas a nós e não à pessoa que nos acompanha. Já perguntaram para minha mulher o número da minha identidade, o meu convênio, o meu endereço... algumas vezes eu brinco dizendo que minha diferença funcional é física e que sei e posso falar por mim; outras vezes ela própria sugere que a pessoa interessada pergunte a mim.

Há vários nomes para este tipo de comportamento. Mas, independente dos nomes, o que se destaca aqui é o descaso associado à falsa idéia de que não temos autonomia para responder a uma simples pergunta, ou escolher, seja pelo gosto ou pelo bolso, nossa própria cadeira de rodas.

As abordagens podem ser amistosas, sinceras, mas também podem ser paternalistas, inconvenientes e invasivas. Pior ainda é quando uma abordagem inconveniente é feita exatamente naquele dia em que estamos de mau humor. Costumo dizer que não me sinto na obrigação de estar sempre bem humorado diante de abordagens inconvenientes, daí minha disposição tanto para responder “na boa”, como para ignorar certas abordagens. Certa vez, numa dessas abordagens inconvenientes, um senhor comentou comigo o seguinte: “Deve ser terrível ser assim (apontando o dedo para baixo, na direção da cadeira)”. Este comentário é uma projeção, como diria Freud... De fato aquele senhor estava dizendo que, para ele, estar numa cadeira de rodas seria uma experiência terrível.

Fico pensando se o comentário sobre a cadeira elétrica não tinha o mesmo sentido deste último... E aí fica no ar a pergunta: Afinal, a cadeira elétrica (a que mata!) seria para ele próprio ou para mim???
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física; cadeira de rodas.

sábado, 8 de novembro de 2008

Tênis com molas para cadeirantes?....

Um dia desses entrei numa grande loja de tênis e saí de lá inspirado. Estava com minha mulher e a idéia era comprar um tênis para ela. Em geral, os vendedores de lojas de shopping centers são muito atenciosos. Alguns são inconvenientes de tão atenciosos. O rapaz que nos atendeu foi atencioso e fiquei grato a ele (ele não sabe disso, creio) pelo quanto me fez refletir sobre nós, pessoas que fazemos parte da diversidade funcional.

“Queremos ver uns tênis”, eu disse. Imediatamente ele apontou para um expositor na parede, com vários modelos, todos tão bonitos quanto caros. O rapaz me olhou nos olhos e afirmou, convicto: “Este modelo é o melhor que temos. As molas são produzidas com uma tecnologia avançada e proporciona muito conforto... Qual é mesmo o seu número?”

Com um toque de bom humor e uma pitada de ironia eu questionei: “Você tem certeza que este é o melhor?” Percebendo minha ironia, ele afirmou que sim, mas sua convicção já não era a mesma. Só então ele percebeu que as molas de alta tecnologia daquele tênis não tinham a menor utilidade para um cadeirante que não sai correndo ou pulando por aí.

Tênis com molas são uma boa metáfora para se pensar a diferença funcional. Pode parecer absurdo, mas aquele rapaz agiu exatamente como age a sociedade, o governo, as escolas... Não, ele não era um vendedor despreparado! Ele realmente me ofereceu um bom produto. Talvez fosse mesmo o melhor. Um modelo bonito, confortável, preferido por muitos usuários de tênis.

Tem sido assim, ao longo de muitas décadas, ao longo de muitos séculos. Os governantes com suas políticas públicas, as escolas com seus programas pedagógicos, a população com sua “generosidade”, o transporte público, os equipamentos urbanos e tantos outros segmentos sociais agem da mesma forma: oferecem para nós aquilo que parece ser bom para a maioria. Padronizam a sociedade com base numa tal norma estatística e com isto acabamos sendo prejudicados e tratados como incapazes e ineficientes (como tenho dito, este é o sentido da expressão “pessoa com deficiência”).

O mesmo episódio do “melhor tênis” serve também para ilustrar os pontos em que os vários segmentos sociais erram no tratamento dispensado à diversidade funcional. Vejamos:

Aquele vendedor não fez a pergunta-chave, não procurou saber para quem era o tênis. Ele foi logo oferecendo o que tinha de melhor, já que a preferência da maioria parece ratificar a qualidade do referido produto. Grande engano! Por ser o melhor para a maioria, não significa que vá atender minha necessidade, meu gosto e meu bolso. Talvez para aquele rapaz, todos os pés são iguais, da mesma forma que para o senso comum todas as diferenças funcionais são iguais.

Estamos cercados de gente competente, gente bem preparada, bem intencionada, mas que, como aquele vendedor, estão generalizando particularidades. O conceito de diversidade funcional, como nenhum outro, contempla demandas específicas exatamente na sua especificidade. Cada um de nós é diferente, mesmo que você, como eu, use uma cadeira de rodas. A cadeira de rodas não nos iguala. Muito pelo contrário! Somos todos diferentes em nossas diferenças e é exatamente por isso que somos apenas semelhantes. Funcionamos, cada um, de forma diferente, mesmo que nossas diferenças sejam semelhantes.

Talvez não haja descaso por parte dos governantes (vamos dar um voto de confiança para os nossos políticos pelo menos para ilustrar meu post de hoje). Falta, na verdade, conhecimento de causa. Ainda não fomos olhados como pessoas, especialmente como pessoas diferentes entre si. Por isso nos impõem com adaptações cosméticas os mesmos meios de transporte, os mesmos programas pedagógicos, as mesmas políticas públicas destinados à população em geral.

Precisamos, todos nós, todos mesmo, reconhecer e respeitar nossas diferenças. Foi-se o tempo em que podíamos terceirizar as responsabilidades e os desmandos que afetavam e afetam as pessoas com diferença funcional. Pensar a diferença é papel de todos. E, para não ser atropelado pela maioria, quando te oferecerem um belo par de tênis, com molas de última geração, reflita bem antes de aceitar. Ele pode até ficar muito bem nos seus pés, mas a escolha terá que ser, de fato, sua! O que dizem ser melhor para a maioria, costuma não ser bom pra ninguém...
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Comunidade Diversidade Funcional no Orkut

Caro leitor, precisamos de você!

O texto abaixo é de uma comunidade no Orkut. Você está convidado a fazer parte. Mesmo que você não tenha nenhuma diferença funcional, como membro da diversidade humana você também é nosso convidado. Junte-se a nós!

O espaço para o texto de abertura da comunidade é limitado. Lá você encontrará uma desse post.

Comunidade DIVERSIDADE FUNCIONAL
http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=75291029


Esta comunidade acredita que é possível mudar radicalmente a terminologia usada para se referir às pessoas diferentes, especialmente as diferenças físicas, visuais, lingüísticas e intelectuais.

Estamos (mal) acostumados a usar termos que enfatizam uma suposta limitação física. São termos preconceituosos e inadequados, como deficiente, deficiência, pessoa deficiente, portador de deficiência, portador de necessidades especiais, e assim por diante.

O modelo de homem padrão tornou-se um conceito, uma medida com a qual se avalia o desempenho do corpo e das pessoas. O que não cabe nesta medida é descartado, é inadequado, é tratado como inferior. O que ficou conhecido como "deficiência" foi inventado exatamente dessa forma. O funcionamento dos órgãos e partes do corpo precisou ser adjetivado desde então, e a chamada "deficiência", embora gramaticalmente um substantivo, tornou-se, para efeitos práticos, um adjetivo de exclusão... "deficiência" é exatamente isto: ineficiência.

Então, junte-se a nós e mude sua maneira de falar, escrever e pensar:

Vamos substituir a palavra “deficiência” por DIFERENÇA FUNCIONAL.

Vamos substituir o coletivo “pessoas deficientes” ou “pessoas portadores de deficiência” por DIVERSIDADE FUNCIONAL.

Se você é cadeirante, você tem uma diferença funcional física.

Se você é cego, tem uma diferença funcional visual.

Os surdos possuem uma diferença funcional lingüística.

A deficiência mental recentemente passou a ser chamada de deficiência intelectual, mas vamos nos referir a essa condição como diferença funcional intelectual.

Não somos ineficientes (“deficientes”), apenas funcionamos de maneira diferente!

Somos todos diferentes e precisamos (eu, você, nós todos!) compreender de uma vez por todas que nossas diferenças (a minha, a sua, as nossas!) é de fato nosso maior patrimônio. Com nossas diferenças formamos a rica diversidade humana!

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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.

domingo, 2 de novembro de 2008

“Anatomia da diferença... Do que trata este livro?”

A Livraria da Travessa (www.travessa.com.br) é um ambiente muito aconchegante e charmoso, freqüentado por intelectuais e pessoas que amam ler. Estar ali autografando é um prazer mesmo para os autores já acostumados com o sucesso. Já no finalzinho da noite de autógrafos um cliente da livraria aproximou-se de mim e pediu que eu falasse em poucas palavras qual era o ponto alto do meu texto. Falei por uns poucos minutos, enquanto ele acenava positivamente com a cabeça. O cliente levou dois livros, um para ele e outro para dar de presente a um fisioterapeuta amigo da família.

A abordagem do cliente não é um fato isolado. Falar resumidamente sobre um livro (tarefa quase impossível, eu diria) é uma solicitação freqüente. Por outro lado, fazer a mesma síntese escrevendo, especialmente escrevendo para um blog, é bem mais tranqüilo. A curiosidade daquele cliente pode ser também a sua, então, aí está um breve comentário sobre o livro Anatomia da diferença.

Há três aspectos que considero importantes nesse novo livro:

Poucas pessoas sabem que há uma história milenar conduzindo o pensamento, os conceitos e as práticas sociais, religiosas, educacionais e políticas que envolvem a diversidade funcional. Acredita-se que as várias diferenças funcionais são meras conseqüências de doenças, acidentes e, pasmem, até mesmo castigo divino. Daí a importância de um texto que expõe com clareza e sensibilidade as origens e os desdobramentos do que hoje parece ser apenas fatos isolados ou tragédias pessoais.

Um segundo aspecto igualmente importante é a abrangência que a diferença funcional adquire quando é discutida e tratada como um fenômeno próprio da natureza humana, porém agravado pelas práticas sociais, políticas, religiosas, educacionais etc. Aquilo que parecia ser uma realidade adversa, exclusiva de uns poucos, torna-se uma realidade que alcança a todos em algum momento da vida. Gosto do exemplo da rampa de acesso para ilustrar este aspecto: a rampa que me atende hoje por ser usuário de uma cadeira de rodas (minha diferença funcional é uma paraplegia) atende também à mãe que empurra o carrinho de bebê, atende aos que estão temporariamente funcionando de forma diferente, dependendo de um instrumento qualquer (bengala, andador, ou mesmo uma cadeira de rodas) e atende aos idosos que, via de regra, preferem uma rampa, a ter que subir escadas. Trocando em miúdos, a rampa que atende a um cadeirante hoje, será útil para todos em algum momento da vida.

O terceiro aspecto é talvez o mais relevante. Praticamente tudo o que se sabe sobre diversidade funcional foi produzido por pessoas que não têm qualquer experiência direta com uma diferença funcional. Os conceitos, as teorias, as explicações, orientações e, conseqüentemente, os textos, são em sua maioria, produzidos por técnicos da área de saúde, educadores, pesquisadores ou curiosos que olham as diferenças funcionais “de fora”, sem qualquer experiência vivencial direta. Anatomia da diferença: Normalidade, deficiência e outras invenções é um livro produzido por alguém que convive com a diferença, ou seja, experimenta na carne e no cotidiano o que é a diferença funcional. Esta experiência direta, aliada ao conhecimento teórico, confere ao livro um caráter realmente diferenciado.

Anatomia da diferença é mais que um livro. É, de fato, uma nova abordagem daquilo que a sociedade conhece como “deficiência”. Depois de ler o livro certamente você duvidará do seu status de “pessoa normal”.

domingo, 19 de outubro de 2008

Sobre águias, galinhas e diversidade funcional

Já me perguntaram várias vezes, tanto em conversas informais como em palestras, sobre pessoas que parecem usar sua diferença funcional para obter favores, benesses e privilégios. Na última vez que fui abordado, percebi um certo constrangimento no meu interlocutor. Ele estava preocupado se a pergunta iria me ofender (julgava haver algum “corporativismo” na diversidade funcional). Depois de conversarmos sobre tão polêmico tópico meu interlocutor relaxou.

É sempre importante repetir que somos pessoas, humanos, gente da melhor e da pior espécie, exatamente como ocorre em todos os segmentos sociais e humanos. Uma diferença funcional não melhora nem piora o caráter e os valores de ninguém. E para se pensar em diversidade humana há que se considerar não apenas facetas isoladas da vida, ou de uma pessoa em separado. Precisamos olhar para TODOS. É assim que tenho buscado respostas. Quando não encontro respostas, encontro pistas que alimentam minhas reflexões.

De fato, há uma histórica expectativa de acolhimento e proteção atrelada à diversidade funcional. Felizmente, muitos de nós já deixamos para trás a idéia ridícula e mesquinha de precisamos ser tutelados, ajudados, acolhidos ou paternalizados por causa de uma diferença funcional. Na vida prática, as diferenças são elementos justificadores do paternalismo, daí a expectativa de que o governo ou alguma outra instituição tem que “doar” a cadeira de rodas, o equipamento ou o serviço, o bilhete do metrô ou do cinema tem que ser gratuito, ou, quando algo tiver que ser pago, que o valor seja menor quando o comprador possui uma diferença funcional. O pagamento parece ser compatível com o nosso valor presumido: Pagamos menos porque para a sociedade a diferença funcional vale menos.

Quando esta expectativa paternalista alcança o mercado de trabalho, encontramos, sim (felizmente há muuuitas exceções), pessoas com diferença funcional que esperam ser menos exigidas no trabalho. Ou seja, queremos trabalhar sim, mas, “pega leve comigo, sou um cadeirante...”.

Como podemos ver, há uma cultura paternalista profundamente arraigada na diversidade funcional. Não são apenas “os de fora” que precisam mudar a mentalidade, mas, nós mesmos temos muito a aprender e mudar. Enxergo tudo isto com muita clareza exatamente porque tento enxergar além dos fatos isolados. Não considero (a priori...) que seja sempre pura leviandade, afinal há uma longa história alimentando o senso comum, que aceita e até estimula, de parte a parte, as atitudes paternalistas.

Uma boa maneira de se compreender o paternalismo é a metáfora da águia e da galinha. Quem explora muito bem esta metáfora é Leonardo Boff, teólogo brasileiro que sabe o que diz. Boff é um sábio e sensível pensador, alguém que compreende com singular brilhantismo a condição humana. Sua metáfora apresenta uma águia criada com galinhas... O longo convívio com as galinhas, sem nunca sequer ter visto uma águia em imponente vôo, fez daquela águia uma ave que vivia, comia, ciscava e se comportava como uma galinha. Ela nunca soube que era uma águia, por isso vivia tão bem adaptada entre galinhas. Num dado momento, esta águia sai do chão e voa, tornando-se, de fato, uma águia (Sugiro a leitura de A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana, Boff, L. Editora Vozes).

Quando li o livro, imediatamente apliquei a metáfora às pessoas que vivem passivamente sob a ditadura de um determinado modelo antes imposto, mas devidamente assimilado, exatamente como a águia que se pensava galinha e não se sabia águia. Quando olhamos para os últimos 20 ou 30 séculos de história, encontramos a diversidade funcional sendo tratada e retratada como uma condição inferior. Ao longo do tempo, o senso comum foi impregnado de crenças, idéias e atitudes que ainda hoje influenciam fortemente a imagem social das pessoas com diversidade funcional.

Na metáfora tão bem trabalhada por Boff, a águia precisou ser reconhecida como águia por um naturalista. Depois ela foi erguida pelo braço do mesmo naturalista. Mas, somente quando voou com as próprias asas ela se sentiu e se reconheceu águia.

A diversidade funcional ainda não voa como águia, mesmo depois de algumas décadas de trabalho e conscientização. Há muitos, muitos bons exemplos e estímulos vindos de todas as partes. Mas, há ainda muitas águias entre nós que ciscam e comem e vivem como galinhas.

Voltando ao diálogo com meu interlocutor, uma diferença funcional pode, sim, ser usada para justificar, de um lado, o comportamento e as atitudes paternalistas, e, do outro, a aceitação e/ou a obtenção de favores, benesses e privilégios em razão da diferença funcional. Esta mão-dupla do paternalismo acomoda de parte a parte a diversidade funcional. O antídoto para esse veneno é pensar as diferenças sem qualquer juízo de valor: diferença funcional não é uma condição inferior. É apenas uma condição diferente. Cabe, então, a cada águia e cada galinha jogar na lixeira os velhos modelos – impostos ou assimilados – que distorcem a natureza seja de águia, seja de galinha.

A história mostra para quem quiser ver: As pessoas com diversidade funcional são como águias vivendo em galinheiros sociais. O teste é o vôo. Mesmo as águias que ciscam como galinhas podem voar. E podem voar para longe do paternalismo, da autocomiseração e da acomodação.


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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física; deficiência sensorial; deficiência mental/ntelectual; cadeirante; cego; surdo.

domingo, 21 de setembro de 2008

Anatomia da diferença - degustando a orelha (do livro)

Estou postando a orelha do Anatomia da diferença, para que você tome conhecimento do conteúdo do meu próximo livro.

Boa degustação!


Anatomia da diferença
Normalidade, deficiência e outras invenções
(Ray Pereira, Casa do Psicólogo, 2008)

Em 2003, Ray Pereira* lançou pela Casa do Psicólogo o livro Que diferença faz? Escolhas que marcam. Naquele trabalho o autor expõe o universo da deficiência a partir de um olhar existencialista, explorando flashes de sua própria história para fundamentar seu pensamento sobre a diferença e as escolhas que fazemos ao longo da vida. Em Anatomia da diferença: normalidade, deficiência e outras invenções o autor aprofunda sua discussão sobre a diferença. A deficiência, ampla e rigorosamente investigada para sua tese de doutorado, aparece agora como um instrumento para se discutir a diversidade funcional.

Anatomia da diferença situa a deficiência em um contexto histórico, cultural e vivencial que se aprofunda a cada capítulo, expondo ao leitor uma dimensão pouco explorada por autores cujo cabedal inclui, além de conhecimento teórico e visão crítica, a legitimidade conquistada pela vivência pessoal e direta com a deficiência. Temos aqui um autor que ousa abordar a diferença – e tudo o que foi socialmente construído em torno dela – com o rigor de um pesquisador, sem perder a sensibilidade, o respeito e a delicadeza fundamentais para se discutir uma questão que, sem sombra de dúvida, é essencialmente humana e comum a todos nós em alguma etapa da vida.

É fácil observar, seja na literatura ou na vida, que a deficiência está enquadrada em categorias distintas (cegos, surdos, paraplégicos...). Tal ‘critério’ tem sido usado há séculos e o prejuízo imediato dessa prática esconde uma realidade inquestionável, qual seja a de que cada pessoa é diferente, independente da forma como seu corpo funciona. Daí a tendência em se tratar a deficiência como uma manifestação que deve ser ‘curada’; ou seja, ela é percebida, senão de fato, pelo menos metaforicamente como uma doença para a qual o remédio amargo é a ‘normalização’, o ajustamento compulsório aos modelos considerados ‘normais’ pela sociedade.

Anatomia da diferença: normalidade, deficiência e outras invenções é um texto original, primoroso e atual. Tendo a diferença como ponto central, o autor discute questões típicas da contemporaneidade, como identidade, diversidade, inovações tecnológicas, a ciborguização e sua analogia com a monstruosidade, promovendo um debate intrigante em que a distinção normalidade x anormalidade perde seu sentido, da mesma forma que torna vazios os conceitos de deficiência e disfuncionalidade construídos ou retocados pela medicina e assimilados socialmente. O texto expõe de forma clara e contundente os bastidores da transformação da diferença funcional em algo nocivo e indesejável à sociedade.

Entre as crenças do senso comum e o olhar da ciência, o leitor é brindado com um texto sensível, capaz de revelar sentimentos, expectativas e realidades que não são, muitas vezes, coerentes com o preconceito e o estereótipo sociais a que as pessoas diferentes estão submetidas. Ray Pereira dá, assim, uma contribuição original e importante tanto para o meio acadêmico quanto para aquelas pessoas que desejam aprofundar seu conhecimento acerca das diferenças e da diversidade humana.

Celia Pessoa
Psicoterapeuta, Professora universitária e Mestre em Psicologia Social.

*Ray Pereira é doutor em Saúde Pública (Ensp-Fiocruz) e mestre em Psicologia Social (UGF-RJ). É graduado em Psicologia (UNESA) e Teologia (STBSB). Atua como psicoterapeuta e professor na cidade do Rio de Janeiro.

Vamos jogar "deficientes" no lixo!

Talvez você não saiba, mas pode, sim combater o preconceito. Há várias formas de preconceito e certamente eu e você sozinhos não podemos eliminar esta praga. Mas, há muita coisa que eu posso fazer e que você pode fazer. As pessoas com diferença funcional (aquelas que fora desse blog e em praticamente todo o mundo são chamadas de “deficientes”, “pessoas com deficiência”, “portadores de deficiência”...) enfrentam diariamente várias formas de preconceito implantadas e aceitas em todos os segmentos sociais: o preconceito muitas vezes começa em casa, se estende pela vizinhança, e alcança, com requinte de desatenção e desrespeito, os campos da educação, trabalho, lazer, sem deixar de fora os serviços e equipamentos públicos e urbanos.

Eu poderia discorrer sobre cada um dos campos citados, apontando o problema e propondo soluções, com conhecimento de causa e com a legitimidade que a cadeira de rodas e a longa experiência vivencial me conferem. Mas, o assunto de hoje são os termos utilizados para ser referir à diversidade funcional.

Você já parou para pensar no significado de termos como “deficiência”, “pessoa deficiente”, e o adjetivo “coitado”, corriqueiramente usado contra as pessoas com diversidade funcional? Mesmo nos dicionários mais resumidos, o significado é absurdamente incoerente e incompatível com a vida, o corpo, o desempenho e a dignidade de qualquer pessoa.

Vejamos, então, o significado desses termos, segundo o Aurélio, o mais tradicional dicionário da língua portuguesa

Deficiência: 1. Falta, falha, carência. 2. Imperfeição, defeito. 3. Insuficiência

Deficiente: 1.Em que há deficiência; falho, imperfeito. 2. Pessoa que apresenta deficiência física ou psíquica

A Organização Mundial da Saúde – OMS, que não é um dicionário, mas se assemelha ao Aurélio, também propõe uma definição (aliás, muito parecida com o significado apresentado pelo Aurélio):

Deficiência, para a OMS, é a perda ou anormalidade, temporária ou permanente, de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica.

Parece que os burocratas da saúde olharam apenas para os dicionários quando tentaram definir “deficiência”. Parece que ninguém olhou para o cotidiano das pessoas com diferença funcional. Se tivessem olhado, ou se tivessem, para efeitos de laboratório, colocado o trazeiro numa cadeira de rodas e saído para um curto passeio pelas ruas, praças e locais públicos, facilmente poderiam constatar que a tal “deficiência” não é uma condição restrita ao organismo, ou ao corpo da pessoa em questão. O ambiente participa ativa, senão exclusivamente, produzindo limitações, restrições, obstáculos, e por aí afora...

Ainda não se inclui ativamente o ambiente e a sociedade nas discussões sobre a diversidade funcional. Em termos práticos, exige-se de pessoas como eu, o Geraldo, a Beth, o Fabinho, a Camila, a Lília, o Carlos e o Carlinhos, a Ethel e milhares de outros (minha lista é grande, capaz de ilustrar milhões de posts...) nos adaptemos a um mundo e a uma sociedade criados e estruturados para aqueles que andam, falam, vêem e pensam conforme o formato padrão. Há cerca de dois ou três séculos, o formato padrão foi tomado como “normal” (aqui tem o dedo de algumas instituições poderosas, mas trato disso depois), massacrando qualquer pessoa que fugisse a essa norma.

Se voltarmos agora ao Aurélio e à OMS vamos entender tudinho. A falta, a falha, a imperfeição, a anormalidade etc, só existem porque somos comparados com o padrão que iguala a todos em termos funcionais. Foi adotado como “normal” andar com as pernas e de pé, ouvir e entender com os ouvidos, ver com os olhos. Dessa forma, ver com os olhos do Gem (o querido cão-guia de uma amiga do coração) e ler braile com os dedos, não é normal; como não é normal se comunicar em língua de sinais; como também não é normal usar cadeira de rodas...

E para todos nós, funcionalmente diferentes, quando somos vistos fazendo o que PARA NÓS é normal, somos admirados e elogiados e tratados como heróis (é moleza para um cadeirante ser condecorado como herói, qualquer pulinho que damos sobre um ressalto nos faz heróis!). Curiosamente, somos os únicos heróis cujos elogios recebidos são formulados com um toque sutil de piedade... “Coitados! Como lutam esses deficientes”. Tenho certeza que a Camila e o Carlos nunca ouviram esta frase; eles são surdos e a diferença funcional dos dois é na linguagem (Eles usam LIBRAS), mas, nós outros já ouvidos no mínimo alguma variação dessa frase.

Vamos pensar juntos no sentido de “Coitados!”, palavrinha horrível que a Camila e o Carlos, felizmente surdos, nunca ouviram.

“Coitado” vem de “coitar”, no sentido de afligir, desgraçar (há ainda um sentido sexual em “coitar” que eu não vou discutir aqui). “Coitado” significa também “desgraçado”, “mísero”, “pobre infeliz”...

Um dos sinônimos de “coitado” é “desgraçado”, que significa má sorte; infortúnio; miséria, penúria; infelicidade; privação da graça de alguém; desfavor; pessoa inábil, incapaz, inepta.

Pra encurtar o post, temos razões de sobra para jogar na lixeira termos como “deficiência”, “pessoa com deficiência”, “deficiente”, “coitado” e todos os outros amplamente utilizados para se referir à diversidade funcional.

Minha sugestão é que você ajude a combater o preconceito e a discriminação desses termos, substituindo-os por outros que eu vou mencionar daqui a pouco. O que há de interessante nos termos que vou apresentar é que eles não colocam sobre a pessoa o peso e a responsabilidade por aquilo que ela não consegue realizar. Um exemplo para ajudar a compreender o conceito: Eu sou considerado “deficiente”, “incapaz” de subir uma escada e de usar um banheiro comum... E o problema passa a ser meu, e não da escada ou do banheiro. Não posso pagar essa conta! Ao se construir uma escada, exclui-se todas as pessoas que não podem usá-la, ou o farão com dificuldades. E não são apenas os cadeirantes que são paralisados pela escada (e tentam nos convencer que o que me paralisa é uma simples lesão medular!): os idosos, as crianças mais novas, uma gestante... e quando a gestante passar a carregar o pimpolho num carrinho, lá estará a escada... Ou seja, a médio e longo prazo a escada vai atrapalhar a todos, já que todos esperam envelhecer.

Vamos transformar esta “cultura da deficiência”. Procure substituir os termos, que já será um bom começo:

Substitua ”pessoas com deficiência” e expressões correlatas (referindo-se ao coletivo) por “diversidade funcional”. Você estará se referindo sem qualquer preconceito às pessoas que funcionam de forma diferente daquela considerada “normal”.

Se precisar particularizar, use “diferença funcional”.

Eu, que uso cadeira de rodas, tenho uma diferença funcional que é física.
A Camila e o Carlos, amigos citados acima, se comunicam por meio de LIBRAS (uma língua visual-espacial) eles possuem uma diferença funcional lingüística.
A Ethel, minha querida amiga, que enxerga pelos olhos do Gem, e pelo tato, quando lê o braile, possui uma diferença funcional visual...

Vamos usar e abusar dessa nova terminologia! É uma forma rica e inovadora de lutar contra o preconceito, a discriminação e a exclusão dos diferentes.
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física; deficiência sensorial; deficiência mental/ntelectual; terminologia sobre deficiência; cadeirante; cego; surdo.

Sobre o blogueiro...

Meu nome é Ray Pereira. Moro na cidade (apesar de tudo) maravilhosa, mas nasci em Manhuaçu, uma cidade aconchegante, escondida nas montanhas de Minas. Sou cadeirante desde os vinte anos, quando um acidente de carro mudou os rumos de minha vida. O que parecia ser o fim, representou, de fato, um recomeço, um novo e extenso aprendizado acerca de mim mesmo, do mundo e da vida. Aquele incidente foi, sem dúvida, um divisor de águas em minha vida.

Pouco depois do acidente decidi estudar. Meus objetivos agora tinham como foco principal o novo universo que se abriu para mim a partir do acidente. Estudei psicologia e me tornei terapeuta, profissão que exerço com muito zelo, seriedade e dedicação. Os estudos posteriores (formais e “apócrifos”) foram planejados pensando tanto em minha atividade profissional como no propósito de dar uma contribuição pessoal para a causa da diversidade funcional. Fiz mestrado em psicologia social e doutorado em saúde pública. O ponto de partida de toda a minha vida acadêmica foi uma formação em teologia, num seminário batista... foi estudando teologia que me apaixonei por psicologia, mas isto é uma outra história.

Nasci em Minas, como já disse, mas não sou fazendeiro, nem cafeicultor ou pecuarista. Também não sou mineiramente conservador e nem vendo queijos, mas amo pão de queijo e broa de milho. Atuo mesmo como psicólogo, mais especificamente como terapeuta de adultos e casais há mais de 10 anos. Atuo também como professor e como palestrante, abordando temas relacionados à psicologia e diversidade funcional. Eu também escrevo, mas não me considero um Escritor: três livros, por enquanto, (o terceiro chega às livrarias em poucas semanas) e alguns artigos acadêmicos retratam mais um perfil de estudante curioso, ou de um pesquisador, do que, propriamente, o de um escritor.
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.

sábado, 20 de setembro de 2008

Diversidade funcional...

Diversidade Funcional... A expressão pode parecer nova para você, mas a condição a que ela se refere não é. Basta sair, dar uma olhada à sua volta para dar de cara com a diversidade funcional. Desde os tempos mais remotos somos todos diferentes. E não há padrão de normalidade, costumes ou tecnologia capaz de eliminar a diferença como contingência humana. É isso: somos todos diferentes! Somos iguais, exatamente por sermos todos diferentes, com já bem disse Touraine.

Se ao invés de diversidade funcional eu falasse em "deficiência", certamente todos saberiam qual é o tema central do post de abertura desse blog. O embrião desse blog é uma idéia, um conceito para ser mais preciso. Lido com a diferença funcional há pouco mais de duas décadas. Sou cadeirante e esta condição (que transo muito bem!) me rotula com a conhecida expressão entre aspas, logo acima. Muitos termos e expressões já foram usados para se referir ao que todos nos acostumamos a chamar de "deficiência". Ao longo de muitas décadas, homens e mulheres com diferença funcional têm sido chamados de "pessoas com deficiência", "portadores de deficiência", "deficientes" (este último, proposto pela própria ONU, na década de 70)... os termos anteriores aos que acabo de citar eram ainda mais inadequados: "aleijado", "entrevado" (literalmente, aquele que vive nas trevas...) e assim por diante.

Pois bem, neste blog, o termo "deficiência", se aparecer, estará sempre entre aspas. Se você encontrar alguma ocorrência sem as aspas pode me dar uma bronca com B maiúsculo! Será um descuido imperdoável. E prá começar bem, "deficiência" não! diferença funcional, sim! Nos posts futuros você só encontrará diversidade funcional, diferença funcional e correlatos.

A preocupação com os termos para se referir às pessoas com diferença funcional é antiga, mas pouco ou nada bem sucedida em termos práticos. Todos os termos usados até então enfatizam a "falta", a suposta limitação física, tomando como base o tal padrão de normalidade engendrado pela ciência moderna e pela medicina pós-newtoniana. Nosso corpo - assim como o universo - deixou de ser o mesmo depois da física de Newton. Ao tocar o corpo humano, a visão mecanicista do universo exagerou na metáfora: passamos a ser vistos, de fato, como uma máquina. O coração, os rins, os pulmões, braços e pernas encontraram correlatos nos instrumentos, ferramentas e artefatos mecânicos. O coração é um bom exemplo da mecanização do corpo: a antiga "sede dos sentimentos" perdeu seu lirismo, tornando, para todos os efeitos, uma bomba que regula a circulação sangüínea.

O modelo de homem padrão tornou-se um conceito, uma medida com a qual se avalia o desempenho do corpo e das pessoas. O que não cabe nesta medida é descartado, é inadequado, é inferior, é nada. O que ficou conhecido como "deficiência" foi inventado exatamente dessa forma. O funcionamento dos órgãos e partes do corpo precisou ser adjetivado desde então; e a chamada "deficiência", embora gramaticalmente um substantivo, tornou-se, para efeitos práticos, um adjetivo de exclusão... "deficiência" é exatamente isto: ineficiência.

Eu, um cadeirante que me locomovo de forma diferente (o modelo de homem padrão exige que a locomoção seja exclusivamente através da força e funções musculares das pernas. E de pé!), cheguei a essa condição, a esse lugar bem depois da criação de qualquer rótulo. Em 1984, depois de uma viagem, depois de um acidente. Saí de casa como andante e voltei como cadeirante, com uma paraplegia trazida não pelo acidente, mas pela reprovação no teste imposto pelo padrão de normalidade. Depois de uns bons anos "andando diferente" e sendo visto e tratado como uma pessoa fisicamente ineficiente, compreendi muito bem tudo isso. O que chamam de ineficiência física é para mim uma simples e corriqueira diferença funcional

Nos próximos posts vou explicar o que significa, de fato, "deficiência". Espero que juntos joguemos fora os termos obsoletos e desrespeitosos e que a diversidade funcional seja um conceito compreendido e assimilado por todos.

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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes.