sábado, 17 de abril de 2010

Sexualidade e "Viver a Vida" - parte 4

Luciana e Miguel mal tinham acordado na novela e uma leitora desse blog, cá no mundo real, me enviou um email:

“O casal acertou de primeira, vc viu? Só em novela mesmo... rsssss”...

Sim, é novela. Na vida, nem sempre acertamos de primeira. Aliás, é bastante comum a necessidade de um período de “laboratório”, como costumo dizer. Na novela foi, sim, de primeira. Mas, aqui vai um recadinho para minha leitora, para os curiosos, para os que torcem por alguma Luciana, e também para as próprias Lucianas que estão fora da telinha:

Não importa se é a primeira ou a enésima vez. Os mais belos encontros amorosos da vida real, bem como aquele entre Luciana e Miguel, são belos não pelo aspecto ordinal do encontro, ou pela muita ou pouca experiência das pessoas envolvidas. O que determina tal qualidade é o contexto e a forma como o encontro amoroso acontece. Era a primeira vez, sim, mas havia amor, carinho e entrega sem reservas para o amor. Era a primeira vez, sim, mas havia disponibilidade e cumplicidade para encarar e assumir os riscos. Para tentar de novo, de novo e de novo, caso não conseguissem da primeira vez.

As Lucianas que tentaram e, infelizmente, fracassaram, foram prejudicadas não pela cadeira de rodas, nem pela forma ou desempenho do corpo físico. Em se tratando de sexualidade (e isto vale para todos que ainda respiram!), as cobranças, as expectativas e os falsos moralismos são piores do que qualquer lesão. Nós que apresentamos alguma diferença funcional somos contaminados (ou nos contaminamos) por um veneno ainda mais letal: o preconceito.

Sexo gostoso e gratificante NÃO combina com preconceito, desrespeito, moralismos e regras rabiscadas por terceiros. A propósito, a pior de todas as regras, é aquela vomitada por Ingrid, a mãe de Miguel. Na concepção dela, a condição de cadeirante “matou” a sexualidade de Luciana. Quando vomitou tamanha asneira, ela “fundamentou” sua afirmação dizendo ter consultado vários médicos... Talvez ela nem tenha consultado de fato. Mas, cá fora, há, sim, alguns médicos que alimentam essa “regra”...

Seja na ficção ou no mundo real, sexo gostoso e gratificante, combina com liberdade. Combina com espontaneidade e cumplicidade. Sexo gostoso e gratificante combina com sinceridade de parte a parte. Sexo gostoso e gratificante combina com vida...

Aliás, a vida, antes de se aninhar no útero, percorre as mesmas entranhas por onde brotam os fluidos do amor e do prazer. Talvez seja exatamente por isso que a vida sem amor e sem prazer é árida, triste e amarga.

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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; sexualidade e deficiência; psicoterapia; viver a vida; Ray Pereira.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Sexualidade e "Viver a Vida" - parte 3

Luciana e Miguel fizeram amor...

Torci muito para que esse momento chegasse. E gostei muito da forma como tudo aconteceu.

Um encontro amoroso pode ser prejudicado por vários fatores. Considero o principal deles a atual banalização da sexualidade e do ato sexual. A reboque, chegam por essa mesma esteira a sexualidade precoce e o comportamento sexual irresponsável.

Por outro lado, afeto e sexo juntos agregam qualidade a um encontro amoroso. De fato, afeto e sexo são coisas distintas, mas que combinam muito bem. E ambos, afeto e sexo, marcaram presença no encontro amoroso do casal.

Miguel, o namorado de postura irretocável, declarou para Luciana que “nunca fez amor com tanto amor”. Se a declaração do rapaz é tão bela e profunda, o que dizer das sensações descobertas e experimentadas! Miguel desejou amar Luciana e se dispôs a aprender sobre o amor com ela própria. Decidiram explorar como casal os encantos e mistérios daquele corpo diferente... Que belíssima cena aquela em que ele a toma nos braços e a coloca na cama!

Ambos tinham vivência sexual prévia, mas agiram como um casal inexperiente. Ambos reconheceram que tinham que reaprender antes de descobrir. Antes de desfrutar. Ambos compreenderam que precisavam se entregar um para o outro antes mesmo de alcançar qualquer gratificação.

Luciana sentiu medo... não relaxou no início. É sempre mais fácil (ou menos difícil) lidar com nossos medos do que com o preconceito. O medo é um dispositivo natural. O preconceito, por sua vez, é socialmente construído. Muitas pessoas com diferença funcional assimilam idéias e condutas preconceituosas antes mesmo de testá-las. Se Luciana tivesse assimilado qualquer preconceito sobre si, sobre seu corpo e sua sexualidade, certamente teria sido devorada pelo próprio medo.

Mas, a moça encarou seus medos! Seu belo rosto, antes tenso, relaxou ao perceber que seu corpo não estava INdiferente ou morto... Seu belo rosto sorriu alegre ao descobrir que seu corpo é apenas um corpo novo e diferente.

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sábado, 10 de abril de 2010

Sexualidade e "Viver a Vida" - parte 2

Ao contrário das suspeitas do senso comum, diferença funcional não é sinônimo de problemas sexuais. A inadaptação sexual de um casal pode ocorrer por inúmeros fatores, inclusive fatores banais! Que o digam os terapeutas e advogados de família... Em se tratando de diferença funcional, é sabido que há casos em que a sexualidade pode ser afetada em maior ou menor grau, mas o golpe mais cruel é dado pela desinformação e pelo preconceito. Os obstáculos reais, quando ocorrem, podem perfeitamente ser contornados com ajuda médica e terapêutica. Se a nossa vida sexual não anda (e isto vale para todos. TODOS mesmo!) certamente há algo de errado com a nossa cabeça, muito mais do que com a nossa genitália, ou nossas pernas.

Quando um de nós se fecha para a vida, especialmente quando a recusa é no campo sexual, estamos reverenciando o preconceito com o nosso silêncio. Não importa o que as pessoas pensam sobre a sua sexualidade. E não importa nem mesmo o que a sua família e a família do seu parceiro ou parceira pensam sobre a sua sexualidade. O que importa é o que você pensa! E se você tem duvidas e medos, é preciso encará-los. É preciso reagir e buscar ajuda!

Conforme temos visto, a Luciana também possui dúvidas, medos, e apesar de tudo ela não se mostra refém das dúvidas e medos. Numa conversa que teve com a mãe do seu namorado ela se mostra segura, disposta a conhecer melhor seu corpo e sua sexualidade. Em outras palavras, ela quer experimentar. Isto mesmo: ex-pe-ri-men-tar! Essa atitude exploratória em relação ao nosso corpo e nossa sexualidade são fundamentais! É exatamente dessa forma que todo mundo entra para a vida sexual adulta: explorando, conhecendo, experimentando...

Não sei se a Luciana (ou o Manoel Carlos) poderá me ouvir, ou ler, mas, mesmo assim vou me dirigir a ela, oferecendo uma dica que considero fundamental:

Luciana, curta e explore seu corpo! Você precisa enriquecer seu vocabulário sensorial olhando e tocando seu corpo, sentindo cada pedacinho de sua pele. Sinta também os toques, as carícias e o contato físico com seu namorado... Tenho certeza que tudo isso pode ser muito agradável. Como você mesma disse à Ingrid, isto é, sim, muito simples! Agora preste atenção num detalhe fundamental: Esqueça, esqueça todos os seus referenciais do passado. Você agora possui um outro corpo. Nem melhor, nem pior. Mas, um corpo diferente. Esqueça, então, seus antigos referenciais e encare seu corpo como se vivesse uma nova puberdade, uma nova adolescência... Descubra-se mulher, garota!... E não deixe que os preconceitos e a tutela de terceiros obstruam sua busca. Seja espontânea e amável com você e por você.

E uma última coisa, Luciana: Não abra mão de ser feliz!


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* * *Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; sexualidade e deficiência; psicoterapia; viver a vida; Ray Pereira.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sexualidade e “Viver a Vida” - parte 1


As novelas são ótimos laboratórios para os profissionais que trabalham com comportamento humano. Não tem sido diferente com o atual folhetim das 20h. Além de entretenimento, a novela Viver a Vida aborda assuntos polêmicos e delicados que fazem parte da vida. O núcleo mais atraente para nós que temos alguma diferença funcional é, obviamente, o da protagonista principal, a talentosa e bela atriz Alinne Moraes, que interpreta a personagem Luciana.

O drama de Luciana traz à tona (de forma romanceada, mas com muita consistência) uma realidade que até então era conhecida apenas pelas famílias, educadores e profissionais que lidam diretamente com as pessoas que apresentam alguma diferença funcional. Fora desses círculos imediatos a realidade é pouquíssimo conhecida porque as famílias, com raríssimas exceções, escondem ou negam tais dramas. As famílias que felizmente fogem a essa triste regra contribuem, de fato, para a formação de pessoas mais bem resolvidas em relação à própria diferença.

Há muito que refletir, discutir e escrever a partir da novela Viver a Vida. Mas, o foco do meu interesse nesse momento são os diálogos sobre a sexualidade da Luciana, e, por extensão, a nossa sexualidade.

Sou cadeirante há 26 anos. Minha experiência vivencial, teórica e profissional me permitem dizer que o preconceito, as dúvidas e os medos que cercam a sexualidade da personagem são muito semelhantes ao que temos, vivemos e enfrentamos no cotidiano. Apesar dos avanços da medicina e da cidadania, apesar da informação livre, diversificada e de fácil acesso para a maioria, ainda temos muitos preconceitos, muitas dúvidas e muitos medos atrelados à sexualidade. Nas últimas décadas o preconceito não diminuiu; ele apenas mudou suas feições. Mas continua aí, entre nós. E, muitas vezes, dentro de nós.

A preocupação com o namoro e a vida sexual da personagem Luciana tem suscitado diálogos muito interessantes. Tanta preocupação, aparentemente bem intencionada, traz à tona os mesmos preconceitos do passado. Ainda lembro com clareza as abordagens invasivas e indelicadas sobre minha sexualidade, sobre meus namoros e casamento. Já fui abordado e invadido inclusive por estranhos... e tudo isso me ensinou muito.

Poucos meses depois do meu acidente eu já percebia que a preocupação que as pessoas demonstravam em relação a minha sexualidade era, de fato, uma preocupação com elas mesmas e com a sexualidade delas. As dúvidas e medos também eram, muitas vezes, de motivação pessoal. A título de comparação, ninguém se preocupa com o estômago, os rins, a bronquite ou o bem-estar de amigos (e até de estranhos) com a mesma intensidade, “compaixão”, com o mesmo “zelo” e “boas intenções” com que se ocupam da sexualidade alheia. Se fosse apenas cuidado com a saúde e o bem-estar alheios, por que tal “cuidado” só aparece em relação à sexualidade das pessoas com diferença funcional?

Quando o assunto é sexualidade, há dois pressupostos tomados pela sociedade como verdade:

As pessoas consideradas “normais”, aquelas que não apresentam nenhuma diferença funcional aparente, em princípio são perfeitas e seu bom desempenho e ajustamento sexuais estão garantidos;

As pessoas com diferença funcional, qualquer que seja (mas especialmente os cadeirantes), são incapazes de funcionar satisfatoriamente. Não sentem nem despertam desejo e prazer, devendo, por isso, ficar sozinhas. Quando uma dessas pessoas inicia uma relação amorosa é porque encontrou um parceiro ou parceira resignado, que consegue abrir mão de uma vida sexual plena.

Os dois pressupostos são falsos. E de alguma forma a sociedade sabe que são falsos. Vejamos: o primeiro deles é falso e muitas pessoas e casais sabem disso. Sabem, mas não revelam! Sabem porque vivem em suas relações amorosas exatamente o oposto. Vivem vidas amargas, sem liberdade para expressar a afetividade, sem alegria e sem prazer sexual. A título de exemplo podemos pensar nas muitas mulheres (não-cadeirantes) que não alcançam (ou raramente alcançam) o orgasmo... e podemos pensar também no enorme contingente de homens, aparentemente NORMAIS, que não encaram uma transa sem antes tomar um comprimidinho azul para garantir a ereção.

O segundo pressuposto também é falso. A sexualidade não é um órgão, ou função que se perde. Ela abstrata, subjetiva, psicológica. E o que há de físico na sexualidade é apenas parte de sua manifestação. Chega a ser uma aberração acreditar que uma certa pessoa não possa ter ou despertar desejo, dar e ter prazer. Quando ocorre algo no corpo capaz de interferir nas funções sexuais (isto pode ocorrer com qualquer pessoa!), há que se procurar ajuda e tratar o assunto.

A sexualidade está presente em todas as fases do nosso desenvolvimento, da infância à velhice. Acho pouquíssimo provável que alguém, especialmente na fase adulta e por experiência própria, nunca tenha encontrado os sinais de desejo, fantasia, vontade de se envolver, de dar e receber carinho, de ter alguém ao seu lado para uma troca amorosa. SE tal pessoa existe e SE não encontrou esses sinais, eu diria que é porque não procurou direito.

E uma última provocação: Quem tem problemas sexuais são sempre os outros! Os homens não revelam quando brocham, nem as mulheres revelam que fingem ter orgasmo... Mas muitos homens e mulheres apontam seus dedos preconceituosos para nós, questionando nossa sexualidade.



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