domingo, 16 de novembro de 2008

Autonomia e cadeiras elétricas

Esta semana recebi alguns e-mails inspirados no texto “Tênis com molas para cadeirantes?”, postado na semana passada. As situações do cotidiano são ótimas para ilustrar as discussões desse blog e, como no episódio do tênis, o fato que vou comentar agora é real. Tão real quanto engraçado! Aconteceu esta semana, no elevador do prédio onde fica meu consultório.

Um senhor entrou no elevador junto comigo. Ele me olhou, olhou a cadeira de rodas e, gentilmente, me fez uma sugestão: “A cadeira elétrica não é melhor?”. “De forma nenhuma”, respondi enfaticamente, mas já com um inconfundível sorriso irônico. “Cadeira elétrica mata”, concluí. Ele sorriu, entendendo a brincadeira, e completou: “Não, não. É aquela do motorzinho...”

Desde a mais remota antiguidade, as diferenças funcionais são experiências perturbadoras para a sociedade. No passado, assim como ainda hoje, não se sabia e não se sabe exatamente o que fazer com o desconforto causado pelas diferenças. Por isso, algumas iniciativas são maravilhosas, outras são desastrosas. Quando alguém olha para minha diferença, esse olhar está contaminado por uma longa história de desconforto social em relação às diferenças. Esse mesmo desconforto, nas devidas proporções socioculturais relativas a cada época, fez surgir, por exemplo, a eliminação de crianças com diferenças funcionais na Grécia antiga; nos tempos da Inquisição, a diferença funcional intelectual (condição mais conhecida como “deficiência mental”) levou muitas crianças e suas respectivas mães às fogueiras; atualmente, a eliminação é bem mais sutil, mas não menos dolorosa, moralmente falando. Nós que compomos a diversidade funcional somos simbolicamente eliminados das escolas, do transporte público, do mercado de trabalho, do lazer e de tantos outros segmentos da vida social.

Quando alguém sem nenhum conhecimento de causa manifesta sua opinião sobre o melhor tipo de cadeira, ou mesmo quando se profetiza que as células-tronco vão trazer a cura para nossas diferenças, de fato nossos interlocutores não estão falando para nós, mas, para eles mesmos. Estas e tantas outras abordagens semelhantes costumam ser feitas com certa gentileza, sinceridade e delicadeza, mas, como ocorreu na história do tênis (post passado), tais abordagens não consideram nossa autonomia, nossa preferência, nosso gosto, nossa capacidade e direito de agir e falar por nós mesmos. Um pouco de senso crítico é suficiente para analisar a pergunta “a cadeira elétrica não é melhor?” e entender que a pergunta pressupõe que não sabemos escolher a própria cadeira. Certamente que alguns leitores pensarão que estou exagerando no meu senso crítico. Mas, antes de qualquer crítica ao meu suposto exagero, vale considerar exemplos externos à diversidade funcional, mas que também envolvem autonomia e livre escolha. Vejamos:

Alguém já te abordou na fila do cinema, sugerindo que o filme da sala ao lado é melhor que o filme que você escolheu?
Alguém já te abordou no caixa de um supermercado, sugerindo que há um tipo de iogurte mais saboroso que o do seu carrinho?

Não vejo muita diferença entre o filme, o iogurte e a cadeira. Convenhamos, ninguém escolheu ter uma diferença funcional como se escolhe um iogurte. Claro. Mas, ainda assim, preciso ressaltar que os comentários, opiniões, gentilezas e inconveniências do cotidiano são influenciados por séculos e séculos de tutela absoluta em relação às pessoas com diferença funcional. Desde os tempos mais remotos a tutela vem passando de mão em mão e, dessa forma, a família, a igreja, a ciência, medicina e os técnicos têm falado em nosso nome. Precisamos usar mais e mais nossa voz, fazer valer nossa opinião e percepção acerca de nós mesmos. A preocupação – ou mesmo a mera curiosidade, ou a falta de assunto... – com o tipo de cadeira é um resquício distante da tutela social.

Se você, como eu, tem uma diferença funcional certamente já se deparou com situações em que você foi ignorado. Isto acontece nos consultórios médicos, no comércio, nas repartições públicas, nos restaurantes e em tantos outros lugares, nas circunstâncias em que a pessoa que nos acompanha (aparentemente pessoas “normais”) é abordada com perguntas que deveriam ser feitas a nós e não à pessoa que nos acompanha. Já perguntaram para minha mulher o número da minha identidade, o meu convênio, o meu endereço... algumas vezes eu brinco dizendo que minha diferença funcional é física e que sei e posso falar por mim; outras vezes ela própria sugere que a pessoa interessada pergunte a mim.

Há vários nomes para este tipo de comportamento. Mas, independente dos nomes, o que se destaca aqui é o descaso associado à falsa idéia de que não temos autonomia para responder a uma simples pergunta, ou escolher, seja pelo gosto ou pelo bolso, nossa própria cadeira de rodas.

As abordagens podem ser amistosas, sinceras, mas também podem ser paternalistas, inconvenientes e invasivas. Pior ainda é quando uma abordagem inconveniente é feita exatamente naquele dia em que estamos de mau humor. Costumo dizer que não me sinto na obrigação de estar sempre bem humorado diante de abordagens inconvenientes, daí minha disposição tanto para responder “na boa”, como para ignorar certas abordagens. Certa vez, numa dessas abordagens inconvenientes, um senhor comentou comigo o seguinte: “Deve ser terrível ser assim (apontando o dedo para baixo, na direção da cadeira)”. Este comentário é uma projeção, como diria Freud... De fato aquele senhor estava dizendo que, para ele, estar numa cadeira de rodas seria uma experiência terrível.

Fico pensando se o comentário sobre a cadeira elétrica não tinha o mesmo sentido deste último... E aí fica no ar a pergunta: Afinal, a cadeira elétrica (a que mata!) seria para ele próprio ou para mim???
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; deficiência física; cadeira de rodas.

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