terça-feira, 3 de março de 2009

Mitologia e diversidade funcional: O artesão do Olimpo

Mitologia é um tema fabuloso para se pensar a condição humana, a vida e o mundo. Há várias mitologias, mas a mais conhecida é a grega. Se você não está familiarizado com textos e imagens mitológicas, aqui vai uma dica: esqueça os fatos! O que importa em mitologia é o sentido e a mensagem. Há quem discuta e até afirme a veracidade de alguns temas mitológicos, especialmente aqueles que estão na base de certas religiões. Mas, reafirmo que a mensagem e o sentido são o que há de mais precioso nos mitos.

Nesta nova série de textos, tomarei alguns personagens da mitologia grega para tratar do tema que movimenta esse blog: a diversidade funcional. Quero iniciar com Hefestos (ou Hefesto, ou ainda Hephaistus), uma das divindades gregas do Olimpo. Para os romanos, Hefestos é Vulcano, Tanto para os gregos, quanto para os romanos, Hefestos é o deus do fogo, das erupções vulcânicas, da metalurgia, o ferreiro divino e outras designações semelhantes. O que se destaca em Hefestos é sua habilidade artística refinada. Era um artesão a quem os deuses gregos recorriam quando precisavam de ferramentas, artefatos, armas ou qualquer invento espetacular.

Na lista dos trabalhos de Hefestos, encontramos as armas que Aquiles usou na guerra de Tróia, o escudo e os raios de Zeus. Há outros trabalhos magníficos que ainda mencionarei. Mas, antes, preciso esclarecer um detalhe: Hefestos, o deus grego do fogo, o artesão do Olimpo tinha uma história parecida com a minha e a sua. Hefestos tinha uma diferença funcional. A literatura usa aqueles termos horríveis que evitamos aqui: ele era “coxo”, ele era “manco”.

Há mais Hefestos à nossa volta do que você imagina. Recomendo aos não-cadeirantes que leiam sentados para não caírem surpresos com alguns detalhes muito comuns a todos nós: Vamos lá:

Hefestos é filho partenogênico de Hera, esposa de Zeus. Mas, ela o gerou sozinha. Seu objetivo era vingar-se de Zeus, seu incorrigível marido infiel. Hera queria humilhar Zeus, exibindo um filho nascido sem a sua participação. Hefestos foi gerado para ser objeto de vingança. Porém, o tiro de Hera saiu pela culatra. Seu filho nasceu deformado, feio e com “defeito” nas pernas. Ela não teve nenhum orgulho do seu filho, já que ele não serviria para a sua vingança. Hera, então, rejeitou Hefestos. E não apenas o rejeitou, mas lançou-o do alto do Olimpo, agravando ainda mais sua condição física.

Há algumas variações na literatura acerca da origem da diferença funcional de Hefestos. Não vou perder tempo com os pormenores. Para os interessados, há várias referências a Hefestos na Ilíada e Odisséia, obras clássicas de Homero, o grande poeta grego. Homero, aliás, também tinha uma diferença funcional. Ele era cego.

Voltando a Hefestos... Hera, a mãe, gerou Hefestos para humilhar Zeus. Hera rejeitou o filho e, literalmente, do alto do Olimpo atirou-o ao mar. Mais tarde, a tragédia familiar continua, pois Hefestos vinga-se de sua mãe e, com isso, consegue voltar ao Olimpo. Perceba, leitor(a), os sentimentos envolvidos nessa trama... e no centro desses sentimentos, uma diferença funcional.

A vingança: Um dia, chega ao Olimpo um presente misterioso. Um belo e magnífico trono de ouro que encantou a todos. A obra de arte não tinha destinatário, nem assinatura. Hera, a esposa do todo-poderoso do Olimpo, não resistiu e sentou-se no trono. Hefestos construiu um trono capaz de prender sua mãe. Hera ficou mesmo presa ao trono e não houve quem pudesse salvá-la. A solução só poderia vir das mãos do próprio artesão que, em princípio, negou qualquer ajuda. Ares (Marte) usou a força bruta para convencê-lo, mas fracassou. Dionísio (Baco), deus do vinho, amigo “de copo” de Hefestos, embebedou-o e conduziu-o ao Olimpo.

Ainda assim, Hefestos não se deu por vencido. Negociou sua ajuda exigindo duas coisas: seu retorno ao Olimpo e uma esposa; ninguém menos que Afrodite, a deusa do amor e da beleza. Zeus permitiu o casamento, mas sua intenção era vingar-se de Afrodite que recusara amá-lo. Afrodite não podia desobedecer ao deus dos deuses, mas nunca foi fiel a Hefestos. Esse casamento acaba e, mais tarde, Hefestos casa-se com Cárites.

O mito de Hefestos me parece muito familiar. Conheço algumas histórias de rejeição e desamor cujo elemento central é a diferença funcional da criança. Hera queria exibir seu filho com orgulho; mas uma criança deformada não alegra a mãe. Felizmente, há exceções. Poucas. Mas há, sim, mães que fingem amar seus Hefestos. E há mães que jogam fora seus filhos. E há pais que partem, somem, desaparecem do mapa com a chegada de um Hefestos. E há Hefestos que são jogados fora, mesmo sendo acolhidos, alimentados e educados no sagrado seio do lar. Esta última forma de rejeição é a mais vil e a que me parece mais comum.

Nenhuma mãe planeja ter um filho diferente. Muitas vezes, a criança só nasce para os pais naquele exato momento quando, após o parto, o médico informa que “nasceu perfeito”... Hefestos, ao contrário, não nasceu com essa perfeição desejada pelas mães. Ele foi criado por Tétis, uma ninfa que o resgatou e cuidou dele com carinho. Tétis mostra-nos que não é a ação do útero que faz uma mãe. Adotar uma criança é um gesto nobre. Mas, adotar um Hefestos requer, além da nobreza, uma rara e elevada generosidade afetiva, materna, humana...

Há muito o que refletir sobre Hefestos. Sobre suas habilidades e inovações trabalhando na forja. No próximo post ainda teremos a companhia de Hefestos, o deus do fogo. Aguardem!

Para recomendar esse texto clique no envelope abaixo.
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Palavras-chave: mitologia e deficiência; mitologia grega; Hefestos; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; Ray Pereira.

3 comentários:

PONTO DE ENCONTRO disse...

Ray,
Que texto, estou impressionado.
Um dos melhores que já li e olha que leio bastante, vc falou com a alma.
Sucesso irmão.
Ailton

Anônimo disse...

Belo Texto! Eu aprendo muito com os textos desse blog.
Ray, estou divulgando seu blog na minha faculdade (fisioterapia)
parabéns!
Bianca

Anônimo disse...

Que texto legal, Dr. Ray!
vc tocou em pontos muito delicados, mas com muito tato e com muita verdade.
parabéns!