sexta-feira, 20 de março de 2009

O mito de Procusto: normalidade a qualquer preço (final)

(Descrição: A figura inserida no texto mostra Procrusto na cama, diante de Teseu, que ergue o machado para cortar-lhe as pernas.)
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A cidade de Coridalos e arredores tornou-se um inferno. Procrusto era temido e muito amaldiçoado por seus atos. Os gritos dos mutilados eram ouvidos por toda a Grécia, até que uma deusa decidiu intervir. Palas Atena, deusa guerreira e símbolo da sabedoria quis saber o que acontecia. Procrusto justificou seus atos dizendo que agia conforme a justiça e a razão: “As diferenças são injustas, pois permitem que uns se sobressaiam e subjuguem os demais”. Convicto, ele afirmou: “Minhas camas acabam com as diferenças, igualando a todos os homens. Isto é justo. Isto é razoável.”

Palas Atena ficou sem palavras! Decepcionada, a deusa voltou ao Olimpo. O silêncio de Palas Atena reforçou a crueldade de Procrusto. Para ele, aquele silêncio era um sinal de aprovação. Dessa forma, Procrusto continuava impune eliminando cruelmente as diferenças. Em seu desvario, enquanto mutilava ele expunha suas razões para cada vítima...

Felizmente, tanto na mitologia como em nossa vida cotidiana, há trabalhos que somente os humanos podem fazer. São circunstâncias e ações humanas nas quais os deuses ficam de fora. Entre os gregos havia os heróis que, de certa forma, poupavam os deuses do “trabalho sujo”. Fazendo valer essa regra, a deusa Palas Atena ficou muda e impotente diante do gigante, mas o jovem herói, Teseu, o encarou de frente. O vigor físico de Teseu era impressionante! Antes de conhecer o gigante, em sua lista de feitos heróicos já constava a eliminação de alguns monstros e malfeitores.

Alienado em sua crueldade, Procusto achou que a visita de Teseu fosse amistosa... Ele se autopromove sem o menor pudor: “Convenhamos, bravo Teseu, minhas ações são todas muito razoáveis e justas. Até mesmo a deusa Palas Atena veio me visitar; quando expus minhas razões, caro Teseu, ela simplesmente nao soube o que dizer”.

A resposta de Teseu deu fim aos suplícios de Coridalos: “Louco! As pessoas são diferentes e cada um tem o direito de ser como é, uns grandes, outros pequenos. Não é justo igualar os homens, impedindo que cada um seja como é”. Enquanto ensina um pouco de ética e justiça, Teseu joga Procrusto em uma das camas, submetendo-o ao seu próprio método. Depois de ter as pernas decepadas, o ex-gigante exclama “eu só estava sendo justo!”. Teseu quis que o gigante experimentasse o próprio remédio. Mesmo sem parte das pernas, o corpo ainda estava maior que a cama. Teseu então ajusta Procrusto à própria cama cortando-lhe a cabeça.

Tenho discutido bastante sobre a idéia de normalidade. Para mim, o mito de Procrusto é perfeito para ilustrar o quanto as diferenças funcionais tem sido submetidas às camas de Procrusto. Entre nós há esforços para eliminar as diferenças, normalizando a todos, mas as camas em que somos jogados, ao contrário das de Procrusto, são confortáveis e o apelo normalizador é quase irrecusável. Se um de nós afirma estar bem ajustado e feliz com sua diferença, e recusa deitar-se nas modernas camas de Procrusto, esta fala soa como loucura, desdém, arrogância...

Nossa diferença funcional muitas vezes incomoda mais aos outros do que a nós mesmos. Atribuem a nós uma vida muito mais difícil e dura do que ela é de fato. Pensam que sofremos mais do que sofremos de fato. Pensam que somos tristes, doentes, frustrados, revoltados e, consequentemente, infelizes por sermos “anormais”. Daí a expectativa de normalizar a todos. Daí o sonho de eliminar as diferenças.

Eliminar as diferenças... corrigir as disfunções... normalizar... Não seria mais ÉTICO, mais humano, mais lógico, mais coerente e até mais barato diversificar os caminhos, os meios, as oportunidades? Nao seria mais inteligente eliminar os obstáculos, prover acesso (no sentido mais amplo do termo!) e melhorar o entorno das diferenças, ao invés de lançar a diversidade funcional nas camas de Procrusto?

O que transforma uma diferença funcional em “deficiência”, disfunção e limitação é o ambiente, o entorno, a sociedade em que vivemos e o mundo que nos cerca. É exatamente por isso que termos como “pessoa com deficiência”, “deficiente”, “pessoa com necessidades especiais” caíram tão bem no “gosto” popular! Quando alguém usa esses termos (eu não uso mais!!!), sem perceber está isentando o ambiente, o meio físico e social de qualquer responsabilidade; o problema é da pessoa, daí o rótulo de INEFICIENTE, ou seja, deficiente. Essa visão distorcida, absurda, patrocinam as atuais camas de Procrusto.

Sempre me perguntam se sou contra ou a favor das pesquisas com células tronco, se quero “sair da cadeira” e voltar a ser como antes, se creio em promessas, orações e outros procedimentos que pretendem restaurar a normalidade perdida... Dizer não às pesquisas é uma burrice inaceitável. Da mesma forma, é uma estupidez acreditar que tudo o que a ciência oferece é excelente e irrecusável. Se valorizássemos – e usássemos! – um pouco mais nosso senso crítico e nossa autonomia, a ciência nao seria tão poderosa...

Concordo com a resposta de Teseu: cada um tem um direito de ser como é. E vou um pouco além: cada um tem também o direito de tentar ser o que quiser. Isso equivale a voltar a ser como era, ou mesmo tentar ser como nunca foi. Não questiono o desejo, o investimento, a esperança nem a fé... Mas lamento quando vejo tantas pessoas estagnadas à espera de um milagre. Que venha o milagre! Mas, parafraseando Rubem Alves, a espera pode ser longa. Enquanto se espera, é preciso viver!

Nos próximos textos, mais mitologia Grega e Diversidade Funcional. Aguardem!

Para recomendar esse texto clique no envelope abaixo.
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Palavras-chave: mitologia e deficiência; mitologia grega; Procrusto; normalidade; diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; Ray Pereira.

Um comentário:

Yang disse...

Parabéns pela recuperação deste mito tão antigo e, como de costume, tão atual.

Deixo a seguinte reflexão para corroborar com o texto.

"A Justiça só pode ser igual entre os iguais" Aristóteles

abraços,

Yang