sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sexualidade e “Viver a Vida” - parte 1


As novelas são ótimos laboratórios para os profissionais que trabalham com comportamento humano. Não tem sido diferente com o atual folhetim das 20h. Além de entretenimento, a novela Viver a Vida aborda assuntos polêmicos e delicados que fazem parte da vida. O núcleo mais atraente para nós que temos alguma diferença funcional é, obviamente, o da protagonista principal, a talentosa e bela atriz Alinne Moraes, que interpreta a personagem Luciana.

O drama de Luciana traz à tona (de forma romanceada, mas com muita consistência) uma realidade que até então era conhecida apenas pelas famílias, educadores e profissionais que lidam diretamente com as pessoas que apresentam alguma diferença funcional. Fora desses círculos imediatos a realidade é pouquíssimo conhecida porque as famílias, com raríssimas exceções, escondem ou negam tais dramas. As famílias que felizmente fogem a essa triste regra contribuem, de fato, para a formação de pessoas mais bem resolvidas em relação à própria diferença.

Há muito que refletir, discutir e escrever a partir da novela Viver a Vida. Mas, o foco do meu interesse nesse momento são os diálogos sobre a sexualidade da Luciana, e, por extensão, a nossa sexualidade.

Sou cadeirante há 26 anos. Minha experiência vivencial, teórica e profissional me permitem dizer que o preconceito, as dúvidas e os medos que cercam a sexualidade da personagem são muito semelhantes ao que temos, vivemos e enfrentamos no cotidiano. Apesar dos avanços da medicina e da cidadania, apesar da informação livre, diversificada e de fácil acesso para a maioria, ainda temos muitos preconceitos, muitas dúvidas e muitos medos atrelados à sexualidade. Nas últimas décadas o preconceito não diminuiu; ele apenas mudou suas feições. Mas continua aí, entre nós. E, muitas vezes, dentro de nós.

A preocupação com o namoro e a vida sexual da personagem Luciana tem suscitado diálogos muito interessantes. Tanta preocupação, aparentemente bem intencionada, traz à tona os mesmos preconceitos do passado. Ainda lembro com clareza as abordagens invasivas e indelicadas sobre minha sexualidade, sobre meus namoros e casamento. Já fui abordado e invadido inclusive por estranhos... e tudo isso me ensinou muito.

Poucos meses depois do meu acidente eu já percebia que a preocupação que as pessoas demonstravam em relação a minha sexualidade era, de fato, uma preocupação com elas mesmas e com a sexualidade delas. As dúvidas e medos também eram, muitas vezes, de motivação pessoal. A título de comparação, ninguém se preocupa com o estômago, os rins, a bronquite ou o bem-estar de amigos (e até de estranhos) com a mesma intensidade, “compaixão”, com o mesmo “zelo” e “boas intenções” com que se ocupam da sexualidade alheia. Se fosse apenas cuidado com a saúde e o bem-estar alheios, por que tal “cuidado” só aparece em relação à sexualidade das pessoas com diferença funcional?

Quando o assunto é sexualidade, há dois pressupostos tomados pela sociedade como verdade:

As pessoas consideradas “normais”, aquelas que não apresentam nenhuma diferença funcional aparente, em princípio são perfeitas e seu bom desempenho e ajustamento sexuais estão garantidos;

As pessoas com diferença funcional, qualquer que seja (mas especialmente os cadeirantes), são incapazes de funcionar satisfatoriamente. Não sentem nem despertam desejo e prazer, devendo, por isso, ficar sozinhas. Quando uma dessas pessoas inicia uma relação amorosa é porque encontrou um parceiro ou parceira resignado, que consegue abrir mão de uma vida sexual plena.

Os dois pressupostos são falsos. E de alguma forma a sociedade sabe que são falsos. Vejamos: o primeiro deles é falso e muitas pessoas e casais sabem disso. Sabem, mas não revelam! Sabem porque vivem em suas relações amorosas exatamente o oposto. Vivem vidas amargas, sem liberdade para expressar a afetividade, sem alegria e sem prazer sexual. A título de exemplo podemos pensar nas muitas mulheres (não-cadeirantes) que não alcançam (ou raramente alcançam) o orgasmo... e podemos pensar também no enorme contingente de homens, aparentemente NORMAIS, que não encaram uma transa sem antes tomar um comprimidinho azul para garantir a ereção.

O segundo pressuposto também é falso. A sexualidade não é um órgão, ou função que se perde. Ela abstrata, subjetiva, psicológica. E o que há de físico na sexualidade é apenas parte de sua manifestação. Chega a ser uma aberração acreditar que uma certa pessoa não possa ter ou despertar desejo, dar e ter prazer. Quando ocorre algo no corpo capaz de interferir nas funções sexuais (isto pode ocorrer com qualquer pessoa!), há que se procurar ajuda e tratar o assunto.

A sexualidade está presente em todas as fases do nosso desenvolvimento, da infância à velhice. Acho pouquíssimo provável que alguém, especialmente na fase adulta e por experiência própria, nunca tenha encontrado os sinais de desejo, fantasia, vontade de se envolver, de dar e receber carinho, de ter alguém ao seu lado para uma troca amorosa. SE tal pessoa existe e SE não encontrou esses sinais, eu diria que é porque não procurou direito.

E uma última provocação: Quem tem problemas sexuais são sempre os outros! Os homens não revelam quando brocham, nem as mulheres revelam que fingem ter orgasmo... Mas muitos homens e mulheres apontam seus dedos preconceituosos para nós, questionando nossa sexualidade.



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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; sexualidade e deficiência; psicoterapia; viver a vida; Ray Pereira.

4 comentários:

Unknown disse...

AMEEEEEEEEI, NOSSA CONVERSA VEIO PARAR EM TEXTO...
Sou um pouco suspeita pra falar né? Afinal admiro seu jeito de escrever e questionar sobre vários assuntos, mas não posso deixar de registrar que adorei o texto e o tema que abordou. Todos nós, comuns, temos sempre muitas dúvidas sobre essas questões, principalmente quando não temos contato nenhum com cadeirantes, e diferentes funcionais. Fico feliz de estar aprendendo a cada dia, ainda mais com meu professor "tira dúvidas".
Vou fazer mais visitinhas aqui.
Beijos, Mari.

Anônimo disse...

Parabéns por esse texto tão educativo. EStou enviando prum montao de amigos. Tenho 2 amigos caderantes que nao querem nada com a vida. Nem adianta enviar. então vou ler eu mesma pra eles.
Continue escrevendo. Seu blog é muito inpirador

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Unknown disse...

Parabéns Ray. Vc como sempre, arrebentando em seus textos!!!!
abração, Neusa