As novelas são ótimos laboratórios para os profissionais que trabalham com comportamento humano. Não tem sido diferente com o atual folhetim das 20h. Além de entretenimento, a novela Viver a Vida aborda assuntos polêmicos e delicados que fazem parte da vida. O núcleo mais atraente para nós que temos alguma diferença funcional é, obviamente, o da protagonista principal, a talentosa e bela atriz Alinne Moraes, que interpreta a personagem Luciana.
O drama de Luciana traz à tona (de forma romanceada, mas com muita consistência) uma realidade que até então era conhecida apenas pelas famílias, educadores e profissionais que lidam diretamente com as pessoas que apresentam alguma diferença funcional. Fora desses círculos imediatos a realidade é pouquíssimo conhecida porque as famílias, com raríssimas exceções, escondem ou negam tais dramas. As famílias que felizmente fogem a essa triste regra contribuem, de fato, para a formação de pessoas mais bem resolvidas em relação à própria diferença.
Há muito que refletir, discutir e escrever a partir da novela Viver a Vida. Mas, o foco do meu interesse nesse momento são os diálogos sobre a sexualidade da Luciana, e, por extensão, a nossa sexualidade.
Sou cadeirante há 26 anos. Minha experiência vivencial, teórica e profissional me permitem dizer que o preconceito, as dúvidas e os medos que cercam a sexualidade da personagem são muito semelhantes ao que temos, vivemos e enfrentamos no cotidiano. Apesar dos avanços da medicina e da cidadania, apesar da informação livre, diversificada e de fácil acesso para a maioria, ainda temos muitos preconceitos, muitas dúvidas e muitos medos atrelados à sexualidade. Nas últimas décadas o preconceito não diminuiu; ele apenas mudou suas feições. Mas continua aí, entre nós. E, muitas vezes, dentro de nós.
A preocupação com o namoro e a vida sexual da personagem Luciana tem suscitado diálogos muito interessantes. Tanta preocupação, aparentemente bem intencionada, traz à tona os mesmos preconceitos do passado. Ainda lembro com clareza as abordagens invasivas e indelicadas sobre minha sexualidade, sobre meus namoros e casamento. Já fui abordado e invadido inclusive por estranhos... e tudo isso me ensinou muito.
Poucos meses depois do meu acidente eu já percebia que a preocupação que as pessoas demonstravam em relação a minha sexualidade era, de fato, uma preocupação com elas mesmas e com a sexualidade delas. As dúvidas e medos também eram, muitas vezes, de motivação pessoal. A título de comparação, ninguém se preocupa com o estômago, os rins, a bronquite ou o bem-estar de amigos (e até de estranhos) com a mesma intensidade, “compaixão”, com o mesmo “zelo” e “boas intenções” com que se ocupam da sexualidade alheia. Se fosse apenas cuidado com a saúde e o bem-estar alheios, por que tal “cuidado” só aparece em relação à sexualidade das pessoas com diferença funcional?
Quando o assunto é sexualidade, há dois pressupostos tomados pela sociedade como verdade:
As pessoas consideradas “normais”, aquelas que não apresentam nenhuma diferença funcional aparente, em princípio são perfeitas e seu bom desempenho e ajustamento sexuais estão garantidos;
As pessoas com diferença funcional, qualquer que seja (mas especialmente os cadeirantes), são incapazes de funcionar satisfatoriamente. Não sentem nem despertam desejo e prazer, devendo, por isso, ficar sozinhas. Quando uma dessas pessoas inicia uma relação amorosa é porque encontrou um parceiro ou parceira resignado, que consegue abrir mão de uma vida sexual plena.
Os dois pressupostos são falsos. E de alguma forma a sociedade sabe que são falsos. Vejamos: o primeiro deles é falso e muitas pessoas e casais sabem disso. Sabem, mas não revelam! Sabem porque vivem em suas relações amorosas exatamente o oposto. Vivem vidas amargas, sem liberdade para expressar a afetividade, sem alegria e sem prazer sexual. A título de exemplo podemos pensar nas muitas mulheres (não-cadeirantes) que não alcançam (ou raramente alcançam) o orgasmo... e podemos pensar também no enorme contingente de homens, aparentemente NORMAIS, que não encaram uma transa sem antes tomar um comprimidinho azul para garantir a ereção.
O segundo pressuposto também é falso. A sexualidade não é um órgão, ou função que se perde. Ela abstrata, subjetiva, psicológica. E o que há de físico na sexualidade é apenas parte de sua manifestação. Chega a ser uma aberração acreditar que uma certa pessoa não possa ter ou despertar desejo, dar e ter prazer. Quando ocorre algo no corpo capaz de interferir nas funções sexuais (isto pode ocorrer com qualquer pessoa!), há que se procurar ajuda e tratar o assunto.
A sexualidade está presente em todas as fases do nosso desenvolvimento, da infância à velhice. Acho pouquíssimo provável que alguém, especialmente na fase adulta e por experiência própria, nunca tenha encontrado os sinais de desejo, fantasia, vontade de se envolver, de dar e receber carinho, de ter alguém ao seu lado para uma troca amorosa. SE tal pessoa existe e SE não encontrou esses sinais, eu diria que é porque não procurou direito.
E uma última provocação: Quem tem problemas sexuais são sempre os outros! Os homens não revelam quando brocham, nem as mulheres revelam que fingem ter orgasmo... Mas muitos homens e mulheres apontam seus dedos preconceituosos para nós, questionando nossa sexualidade.
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Palavras-chave: diversidade funcional; diferença funcional; pessoas com deficiência; pessoas portadoras de deficiência; pessoas deficientes; sexualidade e deficiência; psicoterapia; viver a vida; Ray Pereira.
4 comentários:
AMEEEEEEEEI, NOSSA CONVERSA VEIO PARAR EM TEXTO...
Sou um pouco suspeita pra falar né? Afinal admiro seu jeito de escrever e questionar sobre vários assuntos, mas não posso deixar de registrar que adorei o texto e o tema que abordou. Todos nós, comuns, temos sempre muitas dúvidas sobre essas questões, principalmente quando não temos contato nenhum com cadeirantes, e diferentes funcionais. Fico feliz de estar aprendendo a cada dia, ainda mais com meu professor "tira dúvidas".
Vou fazer mais visitinhas aqui.
Beijos, Mari.
Parabéns por esse texto tão educativo. EStou enviando prum montao de amigos. Tenho 2 amigos caderantes que nao querem nada com a vida. Nem adianta enviar. então vou ler eu mesma pra eles.
Continue escrevendo. Seu blog é muito inpirador
Parabéns Ray. Vc como sempre, arrebentando em seus textos!!!!
abração, Neusa
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